Assunto: Bloomsbury bistro Ter Fev 23, 2010 11:43 am
O Bistrô Bloomsbury é um restaurante modesto mas de excelente qualidade localizado em um dos bairros mais refinados de Bennington. Lá fazem coquetéis, brunch, coffee break, almoços e jantares, almoço executivo e café da manhã. Os produtos são sempre frescos e a composição dos pratos também segue a estética ensinada pelos melhores chefs franceses.
O fato de esse bistrô servir apenas pratos vegetarianos não o torna menos freqüentado, inclusive pelos que não são vegetarianos, pois o sabor deles, a diversidade e criatividade em seu preparo acabam se mostrando muito mais atraentes, com a vantagem de serem, ainda, mais saudáveis.
Saladas multicores; burritos de feijão e zucchini; croquetes de quinoa e ervilhas; calzones de legumes, tofu e grãos exóticos; quiches de cenoura e cebola; chop suey vegetariano feito com tofu, chicória e broto de bambu; canelone de berinjela recheada com shitake e nozes; yakisoba de glúten e legumes; felafel; lazanha grega, preparada com alcachofra, berinjela e castanhas; lazanha de espinafre e várias outras massas; minestras; kosherie, que é um prato egípcio feito com lentilhas, arroz, semolina e cebola refogada; tofu ao pesto e tomates; ratatouille, de vegetais e ervas, e vários outros pratos compõem o sortido cardápio do bistrô.
As combinações são excêntricas e altamente palatáveis, sendo que o freguês pode ligar antes e pedir determinado prato não constante do cardápio, que será preparado, desde que vegetariano.
Sem nada animal, nem mesmo laticínios — sem derramamento de sangue.
OFF - Um caso que ficou histórico na comunidade vampírica de Bennington foi o de uma Ancillae Toreador que se interessou por uma ativista ambiental, Joan Bartlett, a qual levava uma vida muito saudável, era vegana, corria todos os dias nas trilhas de Glastenbury, aliás tinha inclusive abandonado todo o luxo de uma vida consumista — exceções para alguns almoços no Bistrô Bloomsbury — e habitava em uma tenda na montanha. Os piadistas maldosos diziam que mais um pouco e ela ficaria com a barba do Swami Ramdev (pré-mídia, já que depois que ele virou estrela pop começou a aparar a barba com desmazelo metodicamente calculado).
Joan era o tipo de pessoa que participava de protestos contra o uso de animais como cobaias em laboratórios e pesquisas científicas, já que com toda a tecnologia moderna isso não é mais necessário. Ela era, também, uma artista muito bem dotada, e expunha suas telas em uma galeria de arte à qual Julie Garceau se dirigia quase toda noite para admirá-las. Além disso Joan escrevia livros de ficção através dos quais tentava veicular didaticamente valores pacifistas e de harmonia com a Natureza, que Garceau lia e invejava, pois queria poder voltar a amar esses valores da mesma forma.
Garceau não podia acompanhar a vida de Joan durante o dia já que ela, como todo ambientalista adepto de movimentos pró-reforma de saúde autênticos, reservava suas noites ao sono, então não tinha uma vida noturna que permitisse a um vampiro menos sensível ter a chance de se interessar por ela. Mas Garceau acompanhava todo o trabalho de Joan e, a bem dizer, por conta dele apaixonou-se pela mortal.
A audiência de Garceau com Stratton, na qual pediu autorização para fazer de Joan sua Neófita, rendeu noites infames de risadas entre os Malkavianos, que, pela falta de consciência dos atos de Garceau, a nomearam depois disso Malkaviana honorária. Nem quiseram profetizar o óbvio. Joan, horrorizada com sua nova vida de morte, em que não podia mais ter contato com o Sol nem ouvir o canto dos passarinhos diurnos, a não ser os pios sorumbáticos das corujas; obrigada a se alimentar de sangue e, muitas vezes, a matar pessoas para isso; se destruiu atirando-se num incêndio. Seu corpo, é claro, nunca foi encontrado. Quando um vampiro é destruído, ele se transforma em pó. Não fica corpo para trás.
— Rötschreck é o nome que se dá ao pavor que o vampiro tem do fogo e do Sol. É um horror implacavelmente irracional e incontrolável. Só mesmo um Ventrue mais velho para conseguir manter a calma perto de uma fogueira muito forte ou ao vislumbrar os primeiros raios do Sol no amanhecer. O instinto é tão forte de se defender ou fugir, que é quase impossível a um Membro destruir-se pela forma como Joan o fez. Atirar-se na direção de um incêndio não é uma opção para um vampiro, porque todo o seu corpo e instintos o impelem na direção oposta. Na melhor das hipóteses, o vampiro ataca com fúria descomunal, "independentemente de elos pessoais ou afiliações", a pessoa que lhe esteja representando uma ameaça seja por brandir uma tocha, seja porque vai atear fogo em um lugar próximo.
Citando textualmente o Manual: "Os estímulos relativamente inócuos, ou aqueles que estiverem diretamente sob o controle do seu personagem-vampiro, dificilmente causam um Rötschreck. Por exemplo, um personagem que veja um cigarro aceso em uma boate ou uma lareira na casa de um aliado, pode ficar pouco à vontade, mas é pouco provável que sucumba ao Medo Vermelho. Porém, se aquele cigarro for apontado ameaçadoramente em sua direção, ou se as chamas da lareira se avivarem subitamente..."
Uma das explicações para o ato de Joan foi que por ela ser uma Toreador ainda muito nova, os sentimentos humanos estavam bem vivos em seu corpo morto — seu desgosto, frustração e tristeza foram tão intensos que venceram a Besta, no frenesi do Rötschreck.
— Sabe-se de comentários de Malkavianos no sentido de que Stratton sabia que Joan não agüentaria. Provavelmente, tornou-se possível entender melhor sua autorização para Garceau fazer de Joan sua Neófita graças à reunião no fim do ano passado, que ele fez com a comunidade vampírica de Bennington, em que reforçou a importância das Tradições da Camarilla tomando o caso de Garceau como exemplo próximo disso:
"É importante que o futuro Neófito seja muito bem escolhido. Nós constatamos pelo caso de Julie Garceau a precariedade de tomar o mero encantamento por um mortal como critério para formação de Linhagem.
"Alguns Membros, com o tempo, começam a se sentir sozinhos, e justamente aqueles de Clãs mais gregários, por paradoxal que isso pareça, sentem mais a solidão do que os membros de Clãs misantrópicos. Mas é importante que nossos Neófitos saibam que essa sensação de solidão desaparece com o decorrer do tempo. Se os primeiros impulsos para formar um Neófito só seu — uma risadinha acompanhou a colocação — forem vencidos, você verá que eles acabam minguando e que, então sim, nesse estado apaziguado o Membro se acha em condição de escolher melhor suas Crias e gerar uma Progênie mais capaz de resistir à Besta.
"O tempo é nossa ferramenta mais poderosa na escolha de Linhagem, e temos a eternidade à nossa frente, a não ser que coloquemos a auto-indulgência, a precipitação e os instintos em primeiro lugar, prestigiando, noite após noite, o descontrole.
"Estou ciente de que muitas vezes é difícil conhecer antes para Abraçar depois — novas risadas ascenderam do auditório, com algumas particularmente forçadas de Johnny Thunder — até porque alguns mortais não têm qualquer tipo de vida noturna, como era o caso de Joan Bartlett, que dormia e acordava com os pintassilgos. Eu sei que os risos agora foram de deboche, mas eu gostaria de ter o prazer de desgostá-los lembrando a todos que não somos muito diferentes, no sentido de que o primeiro raio do Sol nos põe em completo estado de torpor e de que só voltamos à ativa com o primeiro estrídulo de morcego anunciando a chegada definitiva da noite. (Alguns Nosferatus riram com a comparação "engenhosa" de Stratton.)
"Pois bem. (Neste ponto riu um Malkaviano, que precisou ser expulso do salão porque não parava mais de dar risada.) É possível a todos nós investigar determinada pessoa por meio dos seus contatos. Joan Bartlett, por exemplo, era amiga de uma garçonete da taverna do Velho Macauley. Na falta dessas informações, os Nosferatus estão à disposição para instruir quem precise delas."
Àquela altura do evento, os Nosferatus já se haviam retirado, por julgarem o teor soporífero do discurso de Stratton tão fatal quanto o advento do dia.
"Por fim, o último tópico que a Camarilla passou a nós, Príncipes, para o abordarmos junto aos nossos súditos esta noite. Após longo debate, a Camarilla decidiu que abrir ao potencial Neófito a chance de optar entre ser ou não ser Abraçado, não deve ser considerado infringência às leis da Máscara. Se o mortal não aceitar, deve ser trazido a mim para Ordenação de Esquecimento, a não ser, obviamente, que o próprio Membro possa ordená-lo ou houver outro Ventrue mais próximo, que pelas Tradições não poderá se negar de executar a tarefa. "
Johnny Thunder foi um que não pôde se conter depois do discurso e começou a reclamar em voz um tanto alta demais que a Camarilla está vindo com cada vez maior burocracia para cima da comunidade de Membros.
— Um Príncipe não é escolhido pela comunidade, mas pode ser rejeitado por ela. Stratton é de um modo geral bem visto, mas há quem diga que o seu maior talento é disfarçar de vantagens para a comunidade inteira os interesses da Cúpula, através da utilização oportunista de escarmentos e refinada demagogia.
Julie nunca poderia imaginar que mesmo como vampira haveria de querer ser outra coisa.
Como humana era uma eterna insatisfeita, sempre desejando algo mais. Quando seu Senhor, Arnaud Chevalier — um (pseudo) artista decadente de Geração fraca — propôs-lhe a imortalidade como vampira, ela ficou empolgada, achando que era isso que lhe faltava: grandes poderes e uma (não)vida rica em possibilidades em muito excedentes às dos mortais.
Mas ele não havia lhe contado tudo. Não havia contado que no mundo dos vampiros não existe coisa tal como 'liberdade, igualdade e fraternidade'... e que no meio cainita, ela - Cria de um vampiro de Geração inferior - seria a "lanterninha" nessa corrida massacrante chamada Jyhad. Que ela teria que estar olhando por sobre os ombros o tempo todo para se resguardar da traição de membros do próprio clã. Que sua Presença não seria páreo para a Dominação dos Ventrues e que ela estaria tão no controle da própria não-vida quanto estivera sobre sua vida: uma dona de casa no Haiti colonial, casada com um senhor de engenho, Gaston Garceau, que se viu trucidado pela fúria dos escravos na revolução de 1804.
Julie fora salva de ser abusada por seus judiados e vingativos servos graças a um bucaneiro de Tortuga (ex-artista falido), que ela conhecia de outrora, fornecedor de mercadoria contrabandeada para Gaston, mas que posteriormente se revelou um vampiro; então ela foi entender o que era ser Toreador e o quanto Chevalier escapava do estereótipo não tendo nenhum talento artístico em especial, mas somente uma paixão escravizante pela beleza. Pela beleza dela.
Mais uma vez amada por seus dotes físicos, com todo o sentimento de vazio que vem de carona a esse tipo de "amor", ela aceitou se vender em troca do "elixir da imortalidade", pensando que assim poderia ganhar atributos outros além da beleza para ser quista por algo mais.
Mas Chevalier era um zero à esquerda no clã, a única coisa que lhe dava passe livre nos corredores da Camarilla sendo sua fortuna. Ele não tinha especial masterização da Presença e outras Disciplinas do clã. Enquanto Julie conhecia apenas ele da Família de Cainitas, o achava o ser mais poderoso e glorioso em que já pusera os olhos. Depois, foi vendo que na Família ele não era nada demais.
Na primeira oportunidade que encontrou, ela se desvencilhou de seu Senhor sumindo na Europa, até ser reencontrada por ele quando os franceses tiveram que sair de território espanhol por conta da convenção de Sintra. Até então ela vivera em Tarragona como uma nobre francesa, fazendo espalhafato de sua nacionalidade por lhe trazer certos privilégios no território invadido, de modo que assumir outra máscara depois seria impossível. O próprio Príncipe da comunidade local, ao ratificar a convenção como válida também para a comunidade vampírica, lhe ensinou de um jeito amargo a desunião e competição que era a tônica do mundo vampírico.
Chevalier estava furioso quando a reencontrou. Chamou-a ingrata e outros nomes menos educados, judiou dela como se fosse mulher de Valadão... mostrando aí mais de pirata ordinário que de nobre com carta de saque pelos reis de França. Ela manejou fugir com a ajuda do seu fiel carniçal, Bertrand Lambert, que contratou uma assamita para dar conta de Chevalier. O irritado Senhor foi assim apanhado de surpresa, já que os Auspícios Toreadores não funcionam ante o Quietus assamita. Não os de um Toreador fraco como Chevalier. Se ele chegou ou não a escapar do confronto com a assamita, Julie não sabia. Importava que ela conseguira escapar.
De qualquer modo, encontrara em Sebastian Stratton um protetor encantador. Agora se sentia segura, se Chevalier houvesse mesmo sobrevivido não tinha permissão para entrar em Bennington, em todo caso.
Por outro lado, a comunidade regida por Stratton havia se tornado a prisão de Julie. Aí talvez se confirmasse a fama dele de ser o maior mascarado de todos os mascarados: ele conseguia manter seus súditos reféns do jeito mais imperceptível; e nem precisava usar a Dominação para isso.
Solitária e infeliz, desejando um preenchimento que a condição vampírica, apesar de todas as promessas, não lhe propiciara, ela se voltou a buscar o amor humano, seguindo tendências Toreadoras... Os vampiros eram máquinas frias de matar, e ela própria mergulhava cada vez mais nesta condição. Os seres humanos mais sensíveis podiam lhe proporcionar a redentora companhia que anelava. E então sua aventura com a mais sensível dos mortais que pudera conhecer naquela cidade, Joan Bartlett. Deveria ter esperado que Joan sentiria falta dessa sensibilidade ao ponto do desespero. Joan nunca amara Julie. Mas era justamente sua agonia em relação ao vazio de sua morta existência que fazia com que Julie se desdobrasse por ela com dedicação cada vez maior, porque se via em Joan, com a diferença de pensar que a neófita podia ter alguma "salvação" - Julie queria se realizar através da Cria, como qualquer mãe frustrada geralmente faz em relação à filha.
Contudo, a maior tenacidade de Joan em buscar alívio das próprias mazelas interiores era a promessa infalível de que Julie um dia a perderia. Os Auspícios da ancillae eram melhores que os de Chevalier. Julie teria preferido que estivessem errados...
Desde então ela tornou a experimentar como nunca dantes a tristeza, o desânimo, a depressão. A fim de exponenciar ao máximo sua amargura, aquela noite foi ao Bloomsbury bistro, para recordar as múltiplas ocasiões em que vinha flertar com Joan, e assim reviver o horror da perda, que a fazia, enfim, sentir alguma coisa.
[off] Campanha iniciada! [/off]
Jean Jacques Sans-Cervell
Origem : Quebec, Canadá Ocupação/função : jornalista
Assunto: Re: Bloomsbury bistro Sáb Mar 06, 2010 6:16 pm
"Le savant sait et s'enquiert, dit un proverbe Indien; mais l'ignorant ne sait pas même de quoi s'enquerir". ( J.J. Rousseau) [o sábio sabe e se questiona, diz um provérbio Indiano, mas o ignorante não sabe nem sobre o que se inquirir]
Jean Jacques era um bom-achão. Repórter de uma televisãozinha furreca da nação francesa, ele conseguira, entre seus colegas de serviço (e debochadamente, diga-se de passagem) o título honorário de "o repórter mais revolucionário do jornal mais revolucionário". Alguns até o alcunhavam de "o Robespierre das entrevistas", mas este nome não se encaixava uniformemente a ele, uma vez que Jean era muito franzino e às vezes até tímido demais (e também nenhum pouco agressivo ou aguilhotinante como o outro), fato que ia de encontro a suas obrigações de repórter e criava silêncios intermináveis em algumas entrevistas, como naquela vez em que tentava entrevistar Georges Brassens, cantor francês, mas sem muito êxito:
- Vamos rapaz! Me diga! o que você quer que eu responda?
- É que eu queria saber...
- ...
- Bem , eu não sei como dizer. Pra mim, é muito difícil entrar nesses assuntos.
- Apenas entre. Mas com respeito, por favor – e Brassens esgargalhou até o som de suas risadas soltarem seus tímpanos pra fora.
- OH, Mon Dieu! OH, Mon Dieu! Je ne sais pas quoi faire! Seu Brassens, eu tinha uma pergunta que eu faria mas como ela já foi esquecida tive que arranjar outra pergunta que por acaso acabei de esquecer e agora já não sei o que faço, acho melhor eu ir embora que eu já nem sei por que estou aqui, OH mon Dieu! Je suis un fou! Eu não sei o que perguntar mas se eu paro de perguntar eles me demitem uh la la !
E após um desdobramento convulsivo de Jean Jacques, seguido de arrotos contínuos e feitos sempre com a melhor polidez de biquinho, seguidos também de minúsculas expressões estranhas como Parbleu! Morbleu! Avocates des enfers! finalmente uma pergunta saiu, colada ao arroto, diga-se com bastante passagem, suficiente para Brassens se enfezar:
-Oooooooooaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaoooa! Enfim, de quando em quando o senhor apara seu bigode?
O cara podia até arrotar, isto, sei lá, todo mundo faz. Contudo, perguntar sobre o bigode de Brassens, isso era inconcebível. Todos sabiam que Brassens odiava que fizessem brincadeirinhas sutis com o seu enorme "moustache", que mais parecia uma centopéia peluda do que propriamente um emaranhado de pêlos a dar um quê de maior masculinidade ao cantor. De fato, se isso fosse possível, a espécie estaria errada e o "La canne de Jeanne" faria mais sucesso com os plumosos pássaros ou quem sabe com as próprias centopéias fêmeas (isso lá existe?), apaixonadas que ficariam com aquele milhares de pés crespos por cima de um beiço invisível.
Após este acontecimento, a televisãozinha francesa, L' imonde, declarou que o salário de Jean era inversamente proporcional às despesas pecuniárias da empresa, esta que apesar de adorar as entrevistas de Jean, e que para além da raiva se divertia muito com a sem-noçãozice do repórter, sabia no entanto que os telespectadores não demonstravam risos nos índices de audiência divisíveis por zero, os quais eram produzidos ( e com que afinco!) por Jean Jacques.
Assim, o repórter decidiu ( frustrado com entrevistas que não estimulavam seu potencial jornalístico) que tomaria rumo novo em sua carreira e , a partir daí, os apelidos realmente começaram a surgir de verdade – principalmente o de "o furista furduncista". Nesse momento, ele começou a investir no inusitado, naquilo que ninguém queria guardar par si como matéria.
Inicialmente, começou a entrevistar as pessoas dos "Classificados". Buscava os porquês tão cativantes e as mazelas terríveis que faziam com que as pessoas quisessem vender suas bicicletas de 16 anos de uso, ou o carro enferrujado, o aparador de barbear o sovaco, o spray anti-pulgas, o creme dental vencido desde a última invasão de Napoleão, uma réplica do espartilho utilizado pela principal amante de Luís XIV e outras coisas, todas muito úteis, e com valores sentimentais tão delicados, que só uma vida sofrida, frágil e pobre poderia constituí-los como objetos de venda.
Depois disso, tentou entrevistar as propagandas intermitentes dos comerciais. Bem, isto não deu muito certo, pois todas as vezes que tomava fôlego e preparava uma pergunta, a propaganda acabava e ele já tinha que começar outra entrevista, uma vez que a propaganda seguinte era apressada, cheia de negócios, e não podia perder tempo com um furrequinho de bosta, afinal, ela tinha que alcançar o mundo, todas as pessoas, espalhar o benfazejo mel de seus produtos pelo universo, atingir as galáxias e perdurar para sempre como o rutilar perene de uma estrela eternal – todo este discurso traduzido na expressão simples, (en)fática e profundamente funda: "beba coca-cola".
Porém, apesar de suas tentativas infecundas, Jean não desistia nunca. Ele sabia que havia um lugar pra ele. O transcendente, ah o transcendente! Logo estarei lá, com o microfone na boca de Buda (?) ou de Ganesha ou de Tupã, ou de Júpiter, Zeus, ou do Tao, ou de Confúcio, ou de Descartes e quem sabe até de Brigitte Bardot! Mon Dieu, quel rêve! E se deleitava com visões transportantes, paraísos de colunas dóricas em que os jornalistas poderiam elaborar, dos acontecimentos banais, o livro de suas próprias confissões, tomos e tomos de suas vidinhas, estantes abarrotadas e cheias de fungos, redivivas agora, já na apurada e fenomenológica e ordenada estética transcendental. Não havia nada maior no mundo do que o depois do mundo e Jean sabia disso, sentia o cheiro, as visões de um futuro realmente belo, uma carreira alémnistica, apesar de saber que na materialidade de sua vida só encontrara a carreira alienística de um repórter não valorizado como deveria.
Puft. Foi quando achou que o transcendental tinha caído em sua cabeça.. Ou melhor dizendo, em seus olhos. Ouvira falar de um tal de CHIAPPETTI LAMB e do nome que dera a um novo movimento artístico incompreendido e, portanto, genial: o trurrealismo.
Nunca em toda sua vida podia esperar algo parecido. Havia estudado os movimentos artísticos na faculdade. Às vezes se sentia um futurista-retrô, ou um dadaísta pós-moderno, não sabia bem se definir. Porém, trurrealismo, isto era o colapso de uma nova era, da arte sem mistificações, da arte comum, purista de avant-garde,o queijinho (camenberg) de nosso tempo. Não, nunca mais o jubileu dos críticos, o ter-prazer acadêmico de masturbar-se com o membro do outro, não, Mon Dieu!, C' est la clairté de notre vues, c' est l'épanouissement d' un siècle plus surrealiste, plus réel, c'est un nouveau siècle, étincelante, où, bien sûre, tout la vie sera possible vraiment! Naquele momento, Jean havia encontrado sua verdade essencial, não meramente cósmica, como dizem livros místicos, porém aquela que sabia que encontraria um dia, pela força do acaso ou simplesmente por achar tê-la encontrado.
Ele era um júbilo só, um regozijo total. Ele poderia ser livre agora, mais além do que podia imaginar. Conversou com seus colegas de trabalho, disse que estava procurando um senhor chamado Chiappetti Lamb. Arranjaram-lhe um contato. Por fim, ele conseguiu marcar uma entrevista... OH, je suis très heureux, uh là là! O lugar do encontro seria o Bloomsbury bistro, lá na cidade de Bennington. Jean estava ansioso.
Viajou, pois. Na viagem fez uma amizade rápida com crianças ex-prostituídas que trabalhavam como escravas na parte de trás de um zoológico Chinês. Ele as entrevistou. No entanto, aquilo era banal demais. Estava a um passo de seu grande furo jornalístico, entraria no rol da fama dos repórteres, seria realmente "o revolucionário dos revolucionários!". Claro, isto sim. A menos que seu furo rompesse um saco sem fundo.
Adentrou o bistrô recheado de beldades, e por isso tímido, sem querer chamar muito a atenção, com discrição tropeçando em alguma reentrância invisível mas, ao que tudo indicava, existente no piso, ao que se esborrachou de encontro a uma garçonete, fazendo o conteúdo da bandeja virar por sobre uma belíssima loira de semblante melancólico a uma mesinha solitária, a qual ensebava um copo de vinho na mão que nunca era emborcado. Digamos que Jean ajudou-a a decidir bebericar uns goles, visto que o tranco entornou a taça sobre os carnudos lábios dela, entreabertos de surpresa - provavelmente por conta da formosura do recém-chegado. Mas o tanto de sorte deste podia ser apurada da parte que lhe coubera naquele harém de belas mulheres vermontianas: a garçonete, por cima da qual ele estava estatelado, era dona de um corpanzil que devia ter as mesmas medidas de altura, largura e profundidade - e ela não se alteava em menos de 1,90. Jean foi mantido no chão via tabefes desferidos pela pudorosa funcionária, tão generosos quanto as proporções da mesma, mas ele os recebeu submissamente pois dali de onde estava tinha uma vista privilegiada das pernas da loira triste...
off - Como prometido, um post envolvendo o Lamb e a Garceau. Não me decepcionem! Quem quiser entrar na situação, esteja à vontade. É que nem coração de mãe.
Chiappetti Lamb Narrador
Origem : ítalo-americana Ocupação/função : mecenas
Assunto: Re: Bloomsbury bistro Seg Mar 08, 2010 5:24 pm
Lamb tinha concordado se encontrar com o jornalista despirocado do L' imonde para falar dos seus projetos pouco práticos, mas admirados por sonhadores como Jean Jacques Sans-Cervell. Para esse fim, acabou cancelando um encontro com Elena de Ayala, dona do Books for Cooks, que continuamente recusava casar-se com ele mas nem por isso logrando fazê-lo desistir dela. A caminho do Bloomsbury bistro pensou que iria arrepender-se funestamente depois, por ter trocado Elena por Sans-Cervell, tinha certeza disso. Ou não. Ou sim. Talvez tivesse certeza.
Lá estava o rapaz tomando porrada de uma garçonete avantajada enquanto uma loiraça olhava com indignação para o próprio vestido Louis Vuitton lavado a vinho, ficando fácil para Lamb adivinhar o que se passara ali. Mas Jean era dos seus. Ele alegremente recebia a sova anestesiando-se com as endorfinas geradas pela contemplação das pernas da tal loiraça. Lamb a conhecia. Já a vira muitas vezes freqüentando as galerias e museus curatelados por ele. Uma amante da arte, deveria aprovar o jornalista pelo vanguardismo que imprimira ao tubinho clássico e igualmente enjoativo; ela merecia algo mais chamativo: já dissera o mestre André Breton, "A beleza há de ser CONVULSIVA, ou não será beleza."
Depois que a garçonete descontou em Jean toda a sua infelicidade possivelmente consigo mesma, o rapaz logo tomou prumo, alinhou a roupa e pediu licença para limpar o colo da loira; antes de receber resposta já estava prestando o serviço, mas sem usar nenhum pano ou guardanapo, valendo-se da mão nua e crua para esfregar a mancha sobre os seios da mulher. Novas bofetadas, estas certamente muito mais excitantes que a ira obesa da garçonete. Pelo menos para Lamb, aquilo seria o contato mais íntimo que poderia ter com tão linda mulher, tímido feito ele era, amedrontado de mulheres vistosas.
Jean agradeceu o tapa e foi sentar-se a uma mesa, afetando indiferença mas traindo o seu teatrinho pela facilidade com que tomava sustos, por exemplo a tosse seca de um qualquer atrás dele arrancou-lhe a reação de um "certo" jesuíta carola que lutasse contra a tuberculose vendo-se, não obstante, perseguido por um complô dos bacilos. Jean também se pôs a fingir o bebericamento de uma cerveja australiana tão forte quanto uma tequila, e nem se viam mais as bolhas na bebida, choca de tanto tempo conduzindo aquela simulação. Lamb quedara-se a assistir oculto, na cadeira em frente à de Jean. Este teimava também a fingir não ver o mecenas, aproveitando o tempo para fazer poses e empáfias.
Chiappetti pesquisara sobre esse rapaz. Não era difícil saber tudo sobre ele, já que era um exibicionista, embora não assumido, que para aparecer na mídia, em uma época de menor popularidade do seu desempenho jornalístico, apelara para publicar em seu nome uma ameaça ao prefeito de que, uma bela manhã, o mesmo acordaria não com uma cabeça de cavalo no travesseiro do lado, mas com chifres de cavalo no lugar do travesseiro, já que o prefeito gostava tanto de ficar procurando pêlo em ovo. "E os cílios do cavalo, preste bem atenção, serão pêlos de ovo". Jean acabou indo preso por causa disso, mas o advogado facilmente conseguiu alegar insanidade. Colou na hora.
O mecenas não sabia dizer se o rapaz bancava o maluco ou se ele era um maluco que bancava o maluco, e sua disposição em descobrir o segredo de tostines logrou fazer efeito para que colocasse Elena um pouco de fora dos pensamentos, que até então provocavam reações orgânicas embaraçosas. Especialmente embaraçosas em um encontro com Jean Jacques Sans-Cervell, que era capaz de atribuí-las, sem medo algum, ao impacto sexy de sua presença. Se fosse um arrogante, e é o que vamos descobrir.
Lamb sentou-se à mesa, emborcando a cerveja de Jean como se fosse suco de abacaxi. Também apagou o cigarro que o rapaz não fumava, limitando-se a criar fumacê em cima de um carrinho de bebê ao lado.
- Você não sabe a alegria que me proporciona ao me convidar para esta entrevista - Chiappetti foi falando. - Sabe por quê? Você realmente tem a pretensão de saber por que isso? Olhe bem para os meus olhos.
Infelizmente o impacto que Lamb queria causar foi prejudicado graças a um cisco que o pôs a lacrimejar e, ato-contínuo, a esfregar os olhos, então Jean não pôde atender ao repto lançado.
- Só você me conhece realmente, isso não é assustador? Isso não faz pesar sobre os seus ombros uma imensa responsabilidade? - as lágrimas de Chiappetti pareciam exceder o efeito do cisco, ou então era um tronco atravessado na córnea, quem sabe uma toupeira pequena, que pode surtir os mesmos efeitos arbóreos. - Pois eu vou agora lhe dissecar todas as minhas motivações. Você quer saber sobre minhas idéias futurísticas, certo? Foram idéias que eu tive um dia quando acordei e disse para mim mesmo, fingindo ser outra pessoa: "Vou ter idéias grandiosas para um futuro impensado". E as tive. Eu vi o futuro como jamais sonhado por mente humana ou mesmo de codorna. Inclusive que Heráclito já no quarto século antes de Cristo falava sobre essas idéias e na sua linguagem codificada — simplesmente porque os pensamentos dele não se continham nos significantes comuns — ele chamou essa visão que eu tive de "o eterno deja vu", já naquela época um homem de vocabulário moderno e popular para os dias de hoje. Você vê.... Chiappetti queria desabafar suas agruras e mudou de assunto, fingindo que apenas continuava o anterior; mas seus ares de continuação forçariam o interlocutor a procurar o link perdido e, no fim, nenhuma das partes sairia perdendo.
- Tudo aconteceu assim. Eu estava folheando o dicionário, muito por acaso, mas muito por acaso mesmo, muito, num momento de desespero, então eu precisava me distrair, o que quer dizer que o acaso não era tanto assim, você tem razão, e me deparei, dessa vez por efetivo acaso, com a palavra bate-cu. E apareceu como uma gíria carioca, você sabe como aparece nos dicionários, "Bras. RJ gír. V. tuim", coisa do tipo. Juro. E bate-cu é uma palavra que quer dizer "pancada com as mãos nas nádegas." Palavra que é. E fiquei me perguntando, seria uma metonímia? Parte pelo todo não é, porque o todo seria o traseiro inteiro. Quer dizer, é uma metonímia do tipo nádega pelo cu, e nada mais verdadeiro, nada mais absolutamente exato. Pelo menos do ponto de vista ontológico eu estou certo, ou não? E tentei usar essa classificação metonímica na redação de um concurso, e não passei. Por que não? Porque a única instituição que vai aceitar os seus valores como as regras da casa é uma de vanguarda. E aí você tem a prova real se está diante de uma instituição vanguardista ou se trata-se apenas de uma instituição que se finge de vanguardista.
Jean bravamente mantinha o blasé e nisto foi auxiliado por seu Ray-Ban, quando poderia arregalar os olhos por trás do insulfilm.
- Por outro lado, a vanguarda não vai aceitar que você troque bate-cu por xopotó-de-batata, por exemplo, porque essa troca aleatória não prova que você entendeu o assunto. A não ser que você explique que a troca aleatória comporta um significado não aleatório, que é a afirmação da liberdade do pensamento acima da razão utilitarista. Mas aí, você vai ter que explicar. Aí vai ser necessário o discurso, para a sua legitimação. O surrealismo é isso, é uma escola. O trurrealismo é uma atitude. Não usamos discursos, buscamos transgressões aleatórias a dedo, que mostrem em uma imagem o quanto nós sabemos. Tomemos, para exemplificar, a conversa do Chapeleiro com a Alice. Num primeiro momento, mas só nesse primeiro momento, ele não estava dizendo coisa com coisa, e isso é divertido, certo, veja lá aquele ensaio de Freud sobre o nonsense, em que ele tenta explicar por quais mecanismos psicocerebrinos o nonsense exerce tamanho impacto humorístico sobre as mentes mais inteligentes. Porque você não pode esperar que uma cena do Monty Python como aquela da dança do peixe seja seriamente interpretada como engraçada por parte do simples.
- O simples vai dizer "que idiota", é ou não é? "A gente ri porque é idiota", ele vai dizer. Mas nós que sabemos da afiliação consciente do Monty Python ao surrealismo, inclusive com objetivos políticos e muito centrados para terem feito essa escolha, nós, isto é, você e eu, sabemos o quanto é difícil, o quanto é coisa de gênio, conceber a cena mais arbitrária possível.
Chiappetti ficou em silêncio por instantes, para analisar a reação de Jean. O rapaz parecia morto. Preferiu crê-lo morto que dormindo, e por isso não fez verificações.
- Você lembra dessa do Breton? O quanto o Mestre sua nas obras dele para mostrar que a concepção mais arbitrária possível é fruto de trabalho — e de suor? São engraçadas aquelas estórias de Mama Goose em que a vaca pula por cima da lua? Não. Nem para aquele cara que vai dizer "é tão idiota que a gente dá risada". São cenas não plausíveis, mas não surrealistas. Podem ser fantásticas, mas não surrealistas. E onde fica o trurrealismo nisso? No trurrealismo você não precisa saber do que se trata para entender, você entende por ter visto. O surrealista nega a explicação. Ele é arrogante. "Você que suba ao meu nível", diz ele do fundo do poço.
Nesse ponto Jean riu, mesmo que não tivesse vontade, para deixar bem claro que havia identificado a referência cultural: uma frase de Nietzsche que diz "todo o que quiser viver nestas altitudes, deve descer às minhas profundidades."
- O trurrealismo se propõe fins didáticos. O surrealismo foi um movimento mais ligado à política, e sempre esteve fortemente associado ao comunismo. O trurrealismo está ligado à educação.
- Você poderia me dar um exemplo? - Jean pediu, e palitou os dentes de um jeito que encerrava certo desafio.
- Quer exemplo melhor que essas coisas que eu lhe disse? Pois acabo de inventar tudo isso. Eu não fazia idéia do que era trurrealismo, até ser preciso descobrir um sentido para ele. Quando comecei falando do dicionário, eu estava com o pensamento voltado para outro assunto totalmente distinto, mas tudo acaba convergindo no trurrealismo. Eu queria dizer que quando comecei a folhear o dicionário, desagreguei o pó de cada página. Em troca, tive que me contentar com a companhia do movimento, embora o pó fosse muito mais palpável, você não pode pegar o movimento. Você captura o movimento como uma idéia apenas, ou seja, abstratamente. E todo aquele pó que se ergueu das trevas, me causou uma cefaléia alérgica. Experimentei ficar maldizendo o pó durante dez minutos. Não resolveu o problema. Então eu maldisse a minha dor de cabeça. Também não adiantou nada. Sabe o que adiantou?
- Uma aspirina?
- Isso seria convencional.
- E o que seria surrealista?
- Cheirar um formigueiro.
- E o que seria trurrealista?
- Colocar um pica-pau para picar a minha cabeça e extrair dela a dor na forma de um bichinho comestível.
- Isso não seria, simplesmente, fantástico?
- Não, porque o impacto da cena não é só estético...
- Não seria expressionista então?
- Seria expressionista se do buraco aberto pelo pica-pau começasse a jorrar sangue e miolos, e também meio surrealista se, fora de contexto, esse jorro desenhasse na parede as palavras "Faltam cinco minutos."
- O que seria trurrealista em uma cena desse último tipo?
- Depois dos cinco minutos, o cérebro já colado vocabularmente nas paredes, o pica-pau entraria pelo buraco que ele abriu e ocuparia o lugar do meu cérebro. Então ele teria que se dedicar à sua atividade perfurativa de dentro para fora.
- E isso seria doloroso.
- Para mim e para ele, latejante como uma enxaqueca migratória. O surrealista não respeitaria os cinco minutos, porque ele não pode cumprir o que promete, e assim nós podemos antecipar os seus movimentos.
- Então sempre o trurrealista quer dizer alguma coisa?
- Mesmo quando ele não quer dizer nada.
Chiappetti estava muito animado por poder falar de suas idéias, ou melhor, por poder livremente "criar idéias" para um curioso, e não para um juiz, que ultimamente de juízes estava farto, e depois iam achar ruim se ele decidia formar um esquadrão da morte contra esse tipo de gente.
- Então, rapaz, o que vai ser? Posso lhe oferecer um copo de leite?
off: tive autorização dos players do Jean e da Julie pra atribuir algumas ações e reações a seus personagens.
Jean Jacques Sans-Cervell
Origem : Quebec, Canadá Ocupação/função : jornalista
Assunto: Re: Bloomsbury bistro Qua Mar 10, 2010 1:01 pm
- O meu com um tiquinho de gapornas, por favor...
E deixou-se cair em pensamentos. Acabava de entrar em contato direto com a nova corrente, e já manifestava em seus vocábulos e sonhos todas as possibilidades inefáveis de expressão. Desejava, instantaneamente, participar intensamente do movimento, não mais como repórter somente, mas como entusiasta. Seu ânimo redemoinhava naquela palavra trurrealismo e também naquelas explicações todas muito pertinentes sobre a natureza desse novo material.
No entanto, sentia-se um pouco triste. Triste por saber que seu contato com Chiappetti Lamb se reduziria a um encontro apenas. E, portanto, o trurrealismo se transformaria numa conversa que se dissiparia como uma ventosidade - alarmante no começo, mas passado algum tempo, perdida no silêncio dos cheiros.
Isto incomodava profundamente a blaséice de Jean. Como assim? Mon Dieu! Cela ne peut s'accomplir pas! E ficava em seus devaneios vãos, ritmos dolorosos de ilusões, divagares devagares. Era, com certeza, um lerdo, um inane... mas não podia sê-lo, algo maior lhe dizia: A liberdade do futuro estava em jogo – La liberté! Promessa de uma revolução frustrada, não obstante naquele momento reencontrada pelo quase Messias, - se acreditasse realmente em salvadores – Chiappetti Lamb.
E ficou assim, elucubrando e elucubrando e elucubrando. Seus indícios de cérebro estavam totalmente concentrados no como conseguiria espalhar o trurrealismo pela vastidão do mundo, dar asas a esta idéia única de possível, impossível, mais que impossível em um só tempo.
Ele já havia encontrado a correspondência exata com tudo o que esperava da vida: a espontaneidade absoluta do improviso, a arte –movimento, em movimento e movimentando-se, de modo que a própria dimensão do parado já fosse a mágica inverossímil das probabilidades difusas de um passo além das estatísticas inanes da racionalidade racional, irracional e para além do racional e do irracional.
E mais uma vez, o transcendental caiu em sua cabeça. Minto. Desta vez foi em seus pés. Como que tentando acordar Jean, o leite muito quente anteriormente pedido foi inadvertidamente caído (ou talvez jogado) por dentro de seus sapatos, fato que o fez pular como um coelho imitador de macacos, este, por sua vez, pantomimo de um peixe saltitante que representava o papel de uma galinha trotante no viés de um vôo, mas esta última descendente de uma raça de galináceos próxima da ancestralidade de um pterodáctilodesnutrido que ao invés de voar dava pequenos a-us aéreos, caindo sempre na posição contrária de um pulo-de-gato, isto é, quase que empalado pelos pedregulhos de um chão pontiagudo e avantajadamente devastador.
Bem, ao menos era isto que passava por sua cabeça, totalmente contaminada que já estava pelos ideais do trurrealismo. E, de fato, toda essa digressão mental de dor foi a responsável pelas suas novas idéias pululantes.
Finalmente, era isso. Chegara a uma motivação pessoal. Foi quando percebeu que Lamb ainda estava lá, mesmo que honestamente esquecido da presença do outro (também, quem se lembraria de um blasé jornalista, meio que fugido do hospício por condescendência dos donos do estabelecimento?), bebendo algo que Jean não conseguia definir e que , por isto mesmo, já saltava aos olhos do último como algo condizente à filosofia inovadora que nascia tão veementemente naquele modesto bistrô.
Jean, não se contendo, decidiu colocar (mesmo que de maneira bem tímida ) todos os seus planos, expor todo o amealhado de exaltações que lhe vinham na cabeça naquele ínterim:
- Senhor Lamb, eu gostaria de lhe dizer algo. Muito além desta entrevista...
Chiappetti se assustou um pouco. Na verdade, não se assustou nada. Ora, talvez só um pouquinho. Não, na verdade, pensou em Elena, e talvez em tal momento tivesse realmente se arrependido de ter marcado um encontro com Jean Jacques, ao invés de estar com ela. Mas, em todo caso, já estava lá mesmo:
- Você não quer que eu te lembre por acaso o que é bate-cu, é isto? Se você quiser te empresto o dicionário e você pode criar suas próprias relações. Porque quiçá o seu sentido ontológico de entender a própria dinâmica metonímica da redação de um concurso seja distinta, por excelência, da minha.
A idéia era genial, mas não era exatamente o que Jean gostaria de fazer naquele momento.
O que ele queria era dar vazão ao desabrochar de um fruto de idéia, já amadurecido verde desde o princípio. Precisava declarar seu plano. Suas palavras caíram como melancias interiormente verdes em cima da mesa, ou talvez como abacates exteriormente vermelhos. Bem, um outro fruto qualquer, o que importa foi o impacto bem próximo do frutífero que ele despejou sobre os ouvidos de Chiappetti:
- Eu gostaria de lhe fazer uma oferta irrecusável. - e Chiappetti estava decidido a nunca mais conhecer qualquer coisa que se assemelhasse a um francês – Veja, ao longo destes anos tenho guardado um quantia interessante de dinheiro. Nunca em minha vida acreditei que existiria um motivo para gastá-la. Na verdade, eu economizava para que pudesse ter uma soma razoável para a após-vida, lá, onde o monetário é muito mais abstrato do que a especulações da bolsa de valores, aliás, onde, bem observado, tudo deve ser especulação. Mas isso eu pensava em outros tempos, quando ainda não havia encontrado algo verdadeiramente importante para o mundo... Agora, contudo, vejo que o trurrealismo se afirma preponderantemente. Enfim, o que quero dizer é que gostaria de lhe propor uma parceria. Poderíamos abrir um museu, ou algo mais inteligente do que isto, algo que em vez de guardar as quinquilharias do passado, só guardasse outras que nem pudessem ter sido feitas ainda. Ou, quem sabe, qualquer coisa que inventássemos a qualquer segundo... o que acha? Uh là là, je suis un GÊNIE!
E Jean encheu os pulmões de ar, e se estufou de orgulho. Achava que estava fazendo bonito para a loiraça que havia banhado em vinho, sem perceber que ela torcia o guardanapo em fúria, desfechando pelos olhos em fenda setas inflamadas contra ele.
Contudo, a toupeira que estava no olho de Chiappetti pulou desesperadamente contra o peito de Jean e o explodiu, antes que ele pudesse aprofundar jactâncias sobre a esperada "percuciência" de suas propostas. Sentindo-se frágil, decidiu que o melhor a fazer seria pedir outro copo:
- Eu acho que eu gostaria de mais um leite.... desta vez com um tiquinho de titica, por favor.
Enquanto o leite não chegava, Jean segurava sua respiração, afoito, aguardando a resposta de Chiappetti, que, honestamente, parecia não ter ouvido uma palavra sequer do que o repórter havia dito. Aquela loira conseguia ser linda mesmo com as feições convulsionadas como as de uma besta feroz. Mas Jean preferia acreditar que seu discurso era todo envolvente e até mesmo subjugante. De fato, era o óbvio. E o óbvio, para Sans-Cervell, era só a aparência de uma ação mais densa: a comunicação sem obstáculos, o entendimento perfeito. Dos trurrealistas.
off - Morde logo meu traseiro, Julie, senão eu mordo o seu!
Chiappetti Lamb Narrador
Origem : ítalo-americana Ocupação/função : mecenas
Assunto: Re: Bloomsbury bistro Dom Mar 14, 2010 4:02 pm
Enquanto isso uma pequena orquestra de câmara subia em um tablado para tocar Mozart, o que fazia parte do charme do lugar. A acústica era excelente e o microfone em frente ao grupo de músicos não passava de deus ex machina, bem como o berimbau jogado a um canto da plataforma, o qual está lá até hoje, ninguém lhe dando a mínima nem havendo se tornado a sede da comunidade de cupins de Bennington, não obstante a arquitetura do bistrô se compor fundamentalmente de madeira.
Chiappetti falava empolgado sobre as próprias idéias, o que é bastante positivo, afinal de contas se uma pessoa não tem empolgação por si mesma, vai ter por quem mais?
E não foi por causa dessa empolgação que deixou de reparar na transformação paulatina que o rapaz foi sofrendo, ou fazendo (se) sofrer, incomodando sua blaseíce...
Ele não tinha a capacidade para a indiferença, afinal. E Lamb sabia disso. Desde que entrou naquele bistrô e viu o rapaz a ensaiar ausência, mas sobressaltando-se por tossidas e dentes podres, às vezes apontados contra ele como arpões, a desprender uma energia que transformava o ambiente em pura eletrostática, Chiappetti se atreveu a julgar "Ele é um entusiasmado". O que significava que ele se incomodava, não deixava as coisas por menos, era um debatedor, um divulgador, um agitador.
Chiappetti não precisava ser psicólogo para conhecer com mais ou menos precisão e acerto a natureza humana. Era um daqueles indivíduos que vive tão intensamente em sociedade, cercado de pessoas dos mais variados tipos, que desenvolve uma intuição geralmente exata para ilações sobre pontos de personalidade - não de caráter, que o caráter realmente é faceta distinta de uma pessoa, e poucos são bons julgadores de caráter, mas os há.
E embora tenha quem não goste de ser julgado e não queira (questões de vontade) reconhecer-se em certos julgamentos, eles acontecem e podem ser muito mais acurados que os da pessoa sobre ela própria, que vai ter uma resistência natural e inevitável para aceitar determinadas realidades sobre si, e não que não sejam isso mesmo.
Por exemplo o fato de Jean haver apoiado os pés - estes, descalços - no carrinho do bebê do relapso casal ao lado, fornecendo com isso, sem querer (e também se quisesse?), uma chupeta particularmente saborizada para suas sucções de chupim humano (crianças são de fato humanas?); alguns iriam dizer sobre isso que ele era um sujeito malvado, mas seria um julgamento comezinho demais para um ponto fora da curva. Nem tinha ele a intenção de prejudicar a criança, nem a de saber o que era melhor para ela, porque outros problemas de mais solene importância lhe ocupavam os pensamentos e o ser. Nada mais justo que isso.
Aliás, Chiappetti considerava a coisa mais inválida lógica e moralmente definir o grau de cortesia de alguém pelos próprios valores.
Dizer que uma conduta é ética ou não de acordo com os próprios conceitos éticos, faz sentido. Mas quanto o assunto é cortesia, não.
O lambari de óculos-de-fundo-de-garrafa, que Jean tão bem conhece, por exemplo, é um cara que se julga muito polido, ou pelo menos preza por sê-lo. Ele sempre teve críticas aos modos de F. Gudúncio porque o Gudúncio é muito direto e não leva desaforos para casa. Então o lambari, para dar exemplo de cortesia, quis ser cortês com o Gudúncio, e não lhe respondeu o convite. O lambari bem que achou o fim da picada o Gudúncio, tendo sido "grosseiro" com ele outro dia, mesmo assim convidá-lo para comparecer em sua casa. E fez o convite pessoalmente! O lambari não recusou, para não ser deselegante. Por outro lado, no outro dia deixou o Gudúncio esperando feito palhaço, em nenhum momento avisou que não iria. Não deu qualquer satisfação. O Gudúncio lhe escreveu dizendo "isso foi mal-educado da sua parte" e o lambari, para ser fino, nem respondeu a mensagem.
No lugar da escamosa criatura de águas turvas, Gudúncio, para ser educado, teria dito em face do convite "Olha, eu não vou, porque tenho esses e esses recalques em relação a você. Além disso, não me pareceu convite, me parece que você impôs a situação, e por isso não me espere." Quanto ao email posterior, Gudúncio, para ser educado, responderia "Peço que você não tente mais fazer contato com a minha pessoa, até segundo pensamento meu, por enquanto eu quero distância de você." Isso teria evitado outros emails que se seguiram, inclusive.
Quem faltou com a educação?
O lambari foi abjetamente grosseiro. Pois se, por questão de respeito e consideração ao próximo, o objetivo dele é que as pessoas não se sintam mal por sua causa, devido a ações ou omissões da sua parte que podem ser evitadas, então ele tinha que levar em conta o tratamento que para Gudúncio seria cortês.
"Tratar os outros como você quer ser tratado" significa, também, ponderar as seguintes questões: Eu quero ser bem tratado? Quero. Então vou tratar bem o outro. Mas o que é tratá-lo bem? É razoável o que ele entende como bom tratamento? Importa, contudo, se é razoável ou não, se recebendo tratamento diverso ele não se sentirá bem tratado? Eu gostaria que ele também levasse em consideração, no que diz respeito à minha pessoa, o que eu entendo por bom tratamento? Sim? Então devo fazer o mesmo em relação a ele?
O lambari, em toda a sua urbanidade, decência e lógica, acabou agindo com franca estupidez e inépcia mental. Claro que depois ele vai querer alegar que não foi inépcia mental, talvez até prefira mudar o discurso e dizer "quer saber, é que eu quis ser grosseiro sim", porque tem gente que prefere se passar por charlatão ou casca grossa do que ficar com a reputação intelectual comprometida: mais honroso é ser imoral do que burro.
Chiappetti preferia perder quaisquer reputações, mas não a piada:
- Desculpe, poderia repetir? eu não estava prestando atenção.
Jean não levou a mal. Levou, corretamente, na brincadeira - e não porque queria ser correto, razão pela qual conseguiu sê-lo.
Quando você conhece o bastante uma pessoa, sabe quando ela está brincando e quando está querendo ferir. Por isso, geralmente é sábio reservar as brincadeiras para os amigos; para quem não é assim íntimo, é melhor avaliar muito bem as possibilidades de interpretação da sua brincadeira, pois se você for mal compreendido, o maior culpado é quem não soube se fazer entendido.
- Poderia me acompanhar um segundo, Jean? — O lambari teria entendido um segundo literal, você sabe. "Você nunca pergunta se eu quero, mas se eu posso". "Você é tão autoritário, fica dizendo 'putz, você tem que ler esse livro'". Quer dizer, o problema é meu de você ter um entendimento tão restritamente literal? Até que é, pois eu deveria saber como você vai interpretar o que digo. A responsabilidade maior é sempre de quem pode mais.
Com seus pés nus (o que será que aconteceu aos sapatos de Jean? mistério...) o jornalista acompanhou Lamb por uma hora, e alguns segundos mais, num cooper perfeitamente concêntrico em torno da mesa (detalhe absolutamente dispensável), tempo suficiente para que os comensais em redor não pudessem mais fingir que não viam aquela nonsensice acontecer. O Maître se postou ao lado e pigarreou alto para chamar a atenção da dupla e interromper aquele absurdo (por incrível que pareça, ainda que inofensivo o absurdo incomoda) a qual procurava ignorar a presença dos demais em reciprocidade com o proceder dos mesmos (nenhuma lição de moral subjacente, na verdade, caso contrário o trurrealismo teria se perdido). Isto obrigou o Maître a pigarrear mais alto, até que finalmente estava urrando feito o dragão do Apocalipse.
Nesse ponto, Lamb e Sans-Cervell bateram-se as mãos como se comemorando uma vitória. Era a primeira da noite para o trurrealismo, ao que Chiappetti comentou com Jean:
- E nem foi preciso gastar dinheiro.
Quem olhasse para aqueles dois espíritos livres — tão perfeitamente independentes das pressões sociais que um subiu no tablado da orquestra para acompanhar ao microfone, com arrotos solfejantes, o Allegro da Eine Kleine Nachtmusik, e o outro no berimbau marcando o ritmo propositadamente fora de compasso — diria que eram os caras mais felizes do mundo.
Na verdade, Lamb andava num estado de depressão que se Jean não lhe houvesse chamado para a entrevista teria se suicidado naquela noite. E Jean, por sua vez, pouco confiante nos atributos da própria personalidade e físico para fins de impressionar a loiraça que mexia com seus hormônios de modo quase opressivo, apelava para as micagens performáticas.
Felizmente as motivações ninguém pode adivinhar, só especular, e Lamb adubava a fama de ser o vanguardista da cidade e Jean do desencanado mais cuca fresca. Todavia, enquanto o canadense pedia silêncio à orquestra a fim de apresentar um show de humor, a boca dizia o texto, o corpo fazia o gesto, mas a mente se afastava da cena, observando, analisando, avaliando e se preocupando, para então decidir quando e o que dizer em seguida...
off - feito em conjunto com o Carlitos. É post de fossa, pra quem não percebeu. Às vezes eu uso o RPG pra desabafo. E não precisam entender, é só catarse.
Marek Jaroszýnski Ancião
Origem : Polônia
Assunto: Re: Bloomsbury bistro Dom Mar 28, 2010 8:16 pm
Sunna - Power struggle
Já como humano, Marek era um campônio dado ao vandalismo, naqueles bons tempos em que a Polônia havia oferecido sua aliança a Bonaparte. Acabou sendo Abraçado por um Lasombra que, menos interessado nas guerras napoleônicas, tinha suas vistas e forças postas em outro conflito: a luta pela cabeceira do Sabá. Queria, portanto, formar um exército pessoal das Crias mais poderosas. Mas o Senhor de Marek, Arkadiusz Blaszczyk, não tinha outro interesse em suas Crias senão como soldados para combate.
Arkadiusz falava muito mal do Voivode da época, que era o próprio Conde Drácula, e Marek intimamente discordava dele. O discurso de Arkadiusz era parecido com o de um Brujah em certos pontos: insurgia-se contra o "elitismo" do Voivodato, mas por outro lado a casta campesina sempre foi muito passiva e facilmente subjugável na Polônia... na Lituânia... na Tchekoslováquia... na Romênia... resumindo, em todo lugar. Marek já havia estado em várias partes do mundo, e seu pensamento era guiado por uma diretriz muito definida: "Manda-se naquele que não sabe obedecer a si mesmo".
Ser senhor de si, na visão Sabática de Marek, não era reduzir os próprios instintos à servidão, e sim justamente ter a capacidade de deixar que eles dominem e, assim, possibilitem uma reação poderosa o bastante para derrocar de vez com a opressão imposta por outros. Isso que para alguns pode não fazer muito sentido e, a uma análise superficial, parecer até contraditório, para Marek era conceito muito fácil de entender, pois havia sido um homem que vivia em constante conflito com as forças do seu temperamento; caso se tivesse permitido ser desde logo na vida tudo aquilo que realmente era, antes dos vinte já tinha ido parar no corredor da morte de velho.
Ele respeitava seu ódio. Graças a esta força soberana, tinha rank de Ancião por haver diablerizado seu Senhor, apesar de que fora criado há pouco mais de dois séculos. O próprio Senhor. Não sabia como lograra essa façanha, pois convocando todo o ódio armazenado em cada fibra do seu ser transformara-se em um mero aliado da Besta, e assim conseguiu subjugar o Ancião poderoso por quem fora Gerado para as Trevas. Claro que com alguma ajuda de Drácula, que o tratava como seu próprio Progênito. Por isso, quando Marek assumiu a liderança do Sabá, criou um sistema, bastante Sabático por sinal, em que a Seita tem mais de um "órgão" decisório de última instância. O Arcebispo, como chamam o Lasombra dominante, e o Voivode — o Tzimisce dominante. Marek era mais chegado a Morávec do que a seus Consangüíneos. E quando se via apanhado nesses laços de afeto, se é que podia chamar assim, logo desprezava, voltando ao estado neutro que facilitava o apossamento total pela Besta. O Ódio Em Si.
Era para cumprir essa vocação tenebrosa que ele estava ali. Como Lasombra, naturalmente gostava de lugares de bom gosto; e como Lasombra, naturalmente gostava de ser o pioneiro em levar a decadência a esses lugares. Não poderia dizer o que mais o atraía àquele aconchegante ninho de aristocratas metidos a modéstia: se a elegância do bistrô, se a degradação tão mais evidente quanto possibilitava a sóbria nobreza do local. Que graça teria exibir seus poderes e proclamar sua missão perante um pugilo de drogados na fábrica abandonada?
Além do mais, ele soubera pelo "onisciente" Voivode, que o elo mais fraco da Camarilla em Bennington se encontrava lá. Julie Garceau, a Toreador desacreditada da comunidade, apenas tendo lugar reservado nos camarotes de concílios menos importantes por causa de sua fortuna, que os Ventrues prezam por ser o eixo de giro do mundo mortal - e portanto deles.
A simples conexão dos Ventrues com a sociedade humana, ainda que uma infiltração parasitária, manipulativa, como manobra de segurança e manutenção da vampiridade, era um conceito que provocava o mais intenso asco de Marek em relação ao clã dos "Sangue Azul". Provavelmente todo o seu desprezo para com os outros clãs da Camarilla era apenas reflexo da ojeriza em relação à casta que estes haviam escolhido por cabeça. Marek poderia dizer a si mesmo que a obra prestes a realizar naquele distinto espaço, de levantar o véu de ilusões da Máscara, era um ato de compaixão para com os próprios mortais, pois não se pode lutar contra um inimigo que não se conhece.
Escolher Bennington, principado do inimigo mais invicto do Sabá, para recomeçar as investidas desta Seita no continente norte-americano era ato que encerrava não pouca significação. Não tinham sido vitoriosos na última tentativa, precisando de dez longos anos para repor suas fileiras com progênitos bem treinados, mas agora o próprio "Filho" de Dracula viera encabeçar a arremetida e isto só aumentava a já perigosa autoconfiança de Marek, capaz de causar estragos fragorosos.
Se as motivações de cunho idealista não bastassem para o que estava a ponto de obrar ali, Marek se contentava com a diversão sádica da coisa.
Ele envergava um bem talhado terno de padrão gângster, colete longo de lapela, sobrecasaca risca-de-giz. Só não tinha nada de italiano, desprovido da robustez mediterrânea e porta-voz de um sotaque dolorosamente eslavo. Sua competência na gramática inglesa era igualmente sofrível. Na verdade, era o olhar dele que infundia respeito, senão temor, parecendo ter sido emprestado do próprio Satã, com uns toques burlescos de Loki, the trickster god.
Ficou parado à entrada, saboreando sua aptidão para ser notado. Se bem que não é todo dia que se vê a versão franzina de Al Capone com sotaque de porteiro — Marek estava bem consciente do papel inferior dos poloneses na sociedade estadunidense, sendo para a mesma o que os portugueses são para os brasileiros, objeto de piada por sua suposta burrice e falta de personalidade, e isso só o tornava mais satisfeito por ser vampiro e poder exibir tal superioridade em francas, abertas, honestas demonstrações de poder tiranizante, a encarnação impecável do pilar principiológico do Sabá.
Até Lamb e Sans-Cervell interromperam sua apresentação "musical" desatinada, na iminência do clássico batismo por tomates podres — e nisso Marek divisava nitidamente sua magnanimidade, sobretudo porque a "loiraça", sobre quem Jean havia acidentalmente entornado uma bandeja sujando-lhe o caro vestido, finalmente se levantava furiosa prestes a usar o pior dos poderes da Presença: A Majestade Demoníaca.
A Presença não é só ficar tão lindo e maravilhoso que todos lhe caem aos pés deslumbrados, pedindo para ser jogados na parede e chamados de lagartixa. Existe o poder oposto da mesma Disciplina que é causar pavor tão desacorçoante que "os corações desmoronam, poderes cambaleiam e os audazes tremem". Marek sabia das intenções de Julie Garceau não porque tivesse Auspícios (não os tinha): reconhecia-a como vampira pelo cheiro dela; porque não ouvia seu coração bater; porque ela não respirava. Sabia que ela estava para aplicar a Majestade Aterrorizante pois suas feições retorcidas de ódio não faziam crer que seu desejo fosse aqueles dois patetas se lhe prosternarem em gratificada adoração.
Marek foi calmamente até o tablado da orquestra — a qual fazia tempo deixara de compactuar com a subversão sonora pretendia por Lamb e Sans-Cervell, abandonando-os às vaias dos mais grosseiros e bufadas dos menos indiscretos — arrancou o berimbau das mãos de Chiappetti partindo-o na cabeça do próprio, e quanto a Jean, meteu-lhe um tapa na cara que fê-lo cair por cima de um jogo de bateria, concluindo assim com desfecho de ouro a cacofonia da apresentação.
A vampira se deteve, pois sabia que aquele Membro era do Sabá. Por possuir Auspícios Julie conseguia discernir em detalhes as características do Homo vampiricus que tinha diante de si. Era um ancião Lasombra e estava lá com as piores intenções possíveis - mesmo para um membro do Sabá. Sentiu que nem ela sairia dali "viva". Não tinha poder para emplacar com ele, nem aqueles valores honrosos que levam um indivíduo a "morrer" lutando, a não se entregar sem resistência. Sentou-se como mera espectadora, já derrotada.
Marek deu as costas para Jean — o qual tentava, zonzo, se erguer de entre bumbos, tambores, pratos e chimbaus — e para Chiappetti, que massageava a cabeça indignado, mas olhando para Marek com uma pitada de admiração, já que sua agressividade "sem motivo" era uma homenagem inegável ao surrealismo, ou "trurrealismo", ou a merda que seja.
O Lasombra arrancou um suspiro forçado dos mortos pulmões, só para afetar a comiseração escarninha com que desejava impregnar sua interpelação de Garceau:
- Olha só o que a Camarilla fez com você. Tão meiga. Tão submissa. Tão... FRACASSADA! — rugiu, aproximando muito a cara do rosto dela; fosse um desenho animado e os cabelos de Julie teriam voado com o bafo dos infernos daquela exprobração trovejante.
O rastejamento alheio, principalmente vindo de um vampiro — ente que para o Sabá é a confirmação por excelência das teorias evolucionistas — lhe causava muito mais asco que a imbecilidade pastelã de Jean e Chiappetti. Até negar essa prova indiscutível a Darwin, um dos maiores ícones na batalha contra as teses bíblicas, até desse sacrilégio os da Camarilla eram capazes. Por instantes Marek quis ser da Inquisição, para queimar Julie em uma fogueira como herege. Desferiu-lhe tal chute no peito soberbo que poderia levar a crer tratar-se de um misógino ali, dando bicudas nos seios da mulher como se fossem melões para entretenimento futebolístico. Os mesmos que mentalmente o acusavam disso, tinham estado apreciando os tais melões entrevistos pelo decote como se fossem mero ensejo para exercícios eróticos.
Passada a pasmaceira que por instantes deixou os presentes em choque estático, alguns se levantaram para ir socorrer a pobre mulher, a qual, entretanto, apesar de estar apanhando brutalmente ainda parecia agüentar bem o tranco. Qualquer outra provavelmente já teria, no mínimo, desmaiado no lugar dela. Mas Julie só resistia em razão de Marek não valer-se da sua POTÊNCIA, pois tendo os ossos transformados em farinha ela não poderia assistir o espetáculo de horror que ele estava prestes a executar ali. Uma coisa é saber por Auspícios, outra é os sentidos efetivamente presenciarem a cena com toda a vividez de sensações que o real, em vantagem sobre o alerta de Auspícios mais fracos como os de Garceau, pode proporcionar.
O fato de alguns cavalheiros mais heróicos se erguerem para defender a dama, coisa que os próprios Jean e Chiappetti tentaram, não foi mais que a deixa para o sermão de Marek (não por acaso o líder dos Lasombra se chama Arcebispo: catequistas, "moralizadores"): as sombras do lugar se esticaram e adensaram até cobrirem todo o recinto, não restando nem a luz do luar a entrar pelas janelas; tudo bloqueado por uma imensa e pegajosa escuridão — a curiosidade é que ela desprendia o mesmo cheiro do perfume que Marek usava (o Drakkar Noir, óbvio).
Todos viram a coisa acontecer. Não tinha como não ver a própria sombra se fundindo com as dos outros, e de todos com as dos objetos, e assim por diante. Agora Marek não corria o risco de Julie arriscar a petulância de lançar mão da Presença contra ele. A contradição típica dos autoritários: desprezam os fracos por sua anemia moral, mas os aborrecem mais ainda quando mostram a audácia risível de tentar a superação do próprio entreguismo. Sem que Julie pudesse irradiar sua figura, amortalhada pelo aprisionante sudário da Tenebrosidade, a Presença Toreador não teria como surtir qualquer efeito. Como Lasombra ele podia ver na mais absoluta, definitiva, escuridão do breu universal, mas nestas condições ele via o que queria ver. Pois que ninguém se engane, um vampiro não perde sua acuidade visual no escuro; na treva total, contudo, onde não há qualquer fímbria de luminescência, só um Lasombra consegue enxergar efetivamente.
A teia viscosa de escuridão abafava até as exclamações e gritos dos circunstantes. O máximo que Julie podia fazer agora era usar os Auspícios para se comunicar com os Justicares que porventura estivessem fazendo ronda por perto, mas Marek duvidava que fossem conseguir detê-lo. Morávec previra que Bernhard Kappel, o Justicar mais temível, estaria no encalço de Olga, e os demais Justicares e Arcontes não seriam páreo para Marek. O próprio Sebastian Stratton ou seu Senescal não iriam aparecer ali para salvar a não-vida de Julie e de uma dúzia de burgueses, ainda que disso dependesse a conservação da Máscara. O orgulho Ventrue conseguia ser mais forte que suas Tradições, e por isso Marek mais ainda repudiava Stratton, pela visão que tinha dele como um general que se negava a sair em campo se os oponentes não passavam de baratas. O preço desta subestimação seria dos mais altos.
Marek, muito sacana, detinha as mulheres em suas garras de trevas da forma mais lasciva, com a sombras tentaculando e volteando pelo corpo delas com propósitos obscenos. Eventualmente violava inclusive os homens, aqueles que percebia serem mais briosos da própria macheza. Pior que nem era depravação, era só maldade e sadismo.
- Ok, todo mundo, atenção - a voz dele era a única que se propagava nas trevas. - Eu quero deixar uma coisa muito clara para todos vocês. Vampiros existem, e eu sou um deles. Quem duvida? Podem falar abertamente, que permitirei que suas vozes tenham ampla repercussão na minha Tenebrosidade.
- Eu duvido! - disse um mais bocudo.
Ouviu-se nitidamente um "crék" de pescoço quebrando. Marek controlava o volume dos sons dentro do seu casulo de sombras como se manipulasse o de um estéreo por controle-remoto.
- Quem mais duvida? - ele indagou com a voz de timbre galante inalterada.
Seguiu-se um silêncio total, tenso, melodioso (aos ouvidos de Marek).
- Agora eu vou fazer o seguinte. - disse ele mais divertido. - Eu vou dar um beliscão bem violento na nádega direita de cada um de vocês, onde ficará um hematoma tão negro quanto... o meu humor. Quando vocês forem Obliviados, o que provavelmente os idiotas que estão para vir tentarão fazer, vocês verão os hematomas, vão comparar na sauna e nos etc's, irão se esforçar para entender e poderão quebrar o esquecimento induzido pela Dominação. Ah sim, permitam que eu me explique. Na verdade todos vocês, merdinhas iludidos, vivem em um matrix criado por vampiros. Tudo que acontece na sua sociedade descrente e alienada é pura marionetagem. A economia, os negócios, as corporações humanas, mudam ao sabor de odiosos vampiros Dominadores chamados Ventrues, que Filhos de Caim fúteis e débeis mentais, feito Julie Garceau, seguem alegremente porque, vocês sabem, há muita desvantagem em ser um pássaro livre.
A referência sem maiores explicações à Toreador se devia ao fato dele achar que era bem conhecida na cidade. E era, mas não necessariamente pelo nome. Por outro lado, o espancamento que a fizera sofrer inicialmente, a identificava como aquela que foi objeto das especiais depreciações na catilinária em curso.
- Viver na gaiola é mais seguro: comida fácil na boca a intervalos regulares, você não precisa ficar lutando ou fugindo de predadores, tem dono que até limpa seu traseiro com oleozinhos perfumados. Mas não precisam me agradecer pela sinceridade, que sou eu, um Lasombra, que supostamente mais despreza a humanidade, aquele que lhes dá a chance de lutar contra mim, fazendo-os saber que eu existo, e que os valorizo tanto quanto um tubarão valoriza uma sardinha. Mas vocês sempre vão preferir quem os engana, aquele que é condescendente e lhes permite viver por meio de pagarem com a própria liberdade e consciência. E vocês chamam isso de "vida". Imaginam-se livres sendo cevados em uma gaiola porque assim não têm que lidar com os predadores nem se engajar em grandes esforços pela sobrevivência, mas o que vocês conhecem? O que vocês sabem? Como pode ser livre quem é capaz de apenas uma escolha, por não conhecer as outras? É por isso que abomino os hipócritas que estão vindo.
"Os hipócritas" era uma alusão à leva de Justicares e Arcontes do Príncipe, que se viram barrados nas portas abertas do bistrô como que por uma sólida e impenetrável membrana de escuridão. Antes que pudessem fazer qualquer coisa para romper a barreira, Marek já teria violentado a todas as pessoas no restaurante, drenado duas ou três delas e, transformando-se ele mesmo em uma massa espessa de trevas, atravessaria o teto arrombado por sua Potência, flutuando então por sobre os adversários idiotas como negra nuvem de tempestade.
Ele estava confiante: Morávec profetizara que ele sairia ileso daquela sua primeira investida contra a Máscara. Era só um aquecimento.
Julie Garceau Ancillae
Origem : França
Assunto: Re: Bloomsbury bistro Ter Mar 30, 2010 6:39 pm
Julie poderia ter reagido ao Ancião Lasombra, pois embora não tão poderosa quanto ele, ela possuía Auspícios e Rapidez: sabia o que estava por vir e poderia fugir sem que ele sequer tivesse tempo de perceber as intenções dela. Com a Rapidez, os movimentos do vampiro até mesmo ficam parecendo flashes de luz colorida — no caso dela um flash cor-de-rosa, dada a cor do seu vestido...
Mas ela não se sentia bem. Como que desejava sofrer maus tratos e até mesmo ser destruída, pois sua existência como vampira se carregava de tanto sentido quanto tivera em sua vida como humana; nem mesmo poderes superiores aos humanos e a "imortalidade" haviam tido o condão de transformá-la no "algo mais" que anelava.
Não percebia que esse algo-mais é questão de caráter e de personalidade, e não de poder, dinheiro ou status social? Como estava cega para essa verdade, achava que não tinha mais conserto para ela, pois atingira o mais alto grau da evolução (pelo ponto de vista do Sabá, o Homo vampiricus é o passo além na escala evolutiva) e ainda continuava vazia e infeliz.
Um Ventrue no lugar dela haveria de encarar a insatisfação como a conseqüência de uma não-vida pobre em realizações, e aí se empenharia cada vez mais em maiores e mais ambiciosos empreendimentos, mesmo que nunca chegando a um mínimo sentimento de plenitude, mas pelo menos sempre em fuga do vazio - enchendo a cabeça e as noites de projetos e maquinações para ocupar posições cada vez mais altas, uma questão de correr da consciência de destituição interior: mas o problema ainda está lá. Julie pelo menos encarava os fatos (era assim que se consolava): nunca encontrara seu propósito existencial; não seria agora, com dois séculos de não-vida, que o descobriria. Deixou-se surrar pelo Lasombra em tácito reconhecimento das acusações que lhe fazia: era uma fracassada, e sua aceitação passiva da crítica mais irava Marek, que proporcionalmente caprichava, em crescente intensidade, o espancamento.
A Toreador experimentava certo prazer em alimentar aquele desgosto e raiva do Lasombra pela inércia dela ante as sevícias, percebendo que sua própria ausência de reação já era uma vingança. Havia qualquer coisa de condescendente em seu estupor e silêncio que ela sabia irritar Marek. Julie possuía um mínimo de Auspícios para ter ciência de que o simples fato de Stratton ou Vanora não se disporem vir enfrentá-lo pessoalmente ofendia o Ancião Lasombra, fazendo-o sentir-se menosprezado e subestimado. Ele queria a atenção das autoridades da Camarilla. Era como uma criança fazendo arte como um apelo da carência.
Julie chegou num ponto em que apanhava com prazer e acabou até concedendo a Marek a caridade de receber um pouquinho de atenção de vampiros "mais dignos" que ela: valendo-se da telepatia dos Auspícios, chamou os Arcontes em patrulhamento mais próximo do local, um deles sendo o Tremere Adrian Norton, famoso pelo acrescido mau humor que sempre pairava em sua fronte, mas sobretudo como ancillae que já havia conseguido produzir o temido Fogo Tremere: chamas esverdeadas que queimam outros vampiros, coisas e pessoas como se fossem fogo comum — mas não o Tremere.
Golpe de sorte? Não. O Ancionato Tremere de Bennington tinha tudo sob controle. Pelo menos assim pensava Julie. Com seus rituais arúspices e Auspícios precisos, eles posicionavam Justicares e Arcontes mais qualificados do seu clã nos lugares que prometiam os maiores contratempos. Esses Anciões, com exceção de Bernhard Kappel, não saíam da Capela Tremere nem para caçar (o "alimento" lhes era levado pelos ancillae do clã) mas justamente o fato de se manterem reunidos em um lugar místico, prontos para executarem rituais complexos que demandariam a união de sangue e poderes de todos, era uma carta na manga da Camarilla em Bennington, provida de alguns dos mais ilustres Anciões do Tremerato no mundo. A Primigênie dera de suas melhores dádivas a Stratton para que a manutenção do seu Principado fosse garantida.
Destarte, na visão de Julie a subversão da ordem naquela comunidade vampírica era algo impossível, o que tornava as coisas muito previsíveis e até agourentas para ela, sinal de que "a perfeição eterna do cosmos" jamais seria abalada: se nessa malha de fatos e destinos o dela seria encarnar o protótipo do zero-à-esquerda no teatro universal, a melhor solução para ela era a Morte Final. Não conseguia mais suportar quem era — e era um ser incapaz de auto-superação. Sentia-se encurralada dentro do próprio corpo. Queria um Salvador, o príncipe encantado no cavalo branco, e para se medir quão fundo encontrava-se no poço de seu psiquismo derrotado, por momentos o seu algoz, o sádico Lasombra que resolvera usar seus seios como aparelho de stepper, apareceu para ela como a solução definitiva.
Sentiu remorsos instantâneos por haver chamado os Arcontes em ronda no bairro: ela não precisava ter feito isso. Norton viria, Julie chamando ou não. Ela não precisava ser participante do próprio resgate, pelo que se lamentaria depois. Mais uma culpa com que se atormentar. Por outro lado, era o único jeito de sentir alguma coisa de novo. "I hurt myself today/ To see if I'd still feel/ I focus on the pain/ The only thing that's real"... Céus, como era patética! Queria maior prova disso que o fato de uma música do Nine Inch Nails retratá-la assim tão bem?
Foi invariavelmente Norton que conseguiu romper a barreira de trevas maciças que impediam a entrada dos Justicares no bistrô sob "ataque terrorista". Disparou o Fogo Tremere para dentro das sombras e, assim, dispersou a Tenebrosidade. A escuridão retrocedeu e tudo voltou ao que era antes. Marek logo retomou a compostura e usou a sombra de Norton atrás dele a fim de puxá-lo pelo tornozelo e fazê-lo cair de boca no chão. Mas agora os Justicares já haviam entrado. O Lasombra se converteu em uma vasta massa de trevas que pairava no ar e que "engoliu" cinco infelizes fregueses do bistrô. Ele já deixara seu recado. E já podia ouvir Morávec dizendo depois "Só você para me garantir janta tão seleta, só você." A nuvem de negritude pulsante fugiu abrindo um rombo no teto, e foi-se dali planando com suas caças.
Jean Jacques Sans-Cervell
Origem : Quebec, Canadá Ocupação/função : jornalista
Assunto: Re: Bloomsbury bistro Seg Abr 05, 2010 7:12 pm
O que é o homem para um macaco? Uma risada ou uma dolorosa vergonha.
Friedrich Nietzsche (tem certeza?)
Não sei de nada, não fui eu mamãe, foi o outro. E que coisa horrível, tem uma mão me roçando. E por mais que eu tente saber a impressão digital, não consigo abrir os olhos.
- Jean, você não sabe de nada...
Trevas e trevas e trevas. Alguém me roçando. E um cheiro obscuro de perfume – negro.
E negro e negro – e sem nenhum dente branco, ou uma lua, uma estrela, nem mesmo uma daquelas coisinhas de criancinhas, sabe, que ficam em cima do berço e brilha... Sabe né?
E de repente alguém me ninando, será o quê?
Placenta. Ah mamãe, saudade – Tá na hora de acordar, não espere a mamãe chamar... lararirarirará e um alegre despertar....
Despertar impossível. Deve haver vozes.
- Cale-se Jean, cale-se... não houve treva alguma... só sonhos de boa noite. ... - FRACASSADA! ... - Você que é o fracasso Jean, sempre foi , sempre será... onde está o teu bendito trurrealismo agora?
Não não houve algo, não sou fracasso, sou esculhambado, mas fracasso? Tá na hora de acordar, não espere a mamãe chamar...
Sombras sombras sombras estridentes e tilintantes...
- Cala a boca Jean. - Não calo não calo não calo. - Vai calar sim. - Venha me fazer, se puder. - Esqueceu do chinelão do papai, é? - Nãaaooo.
Aquilo não tinha graça. Doía, alguém , algo coça em minha cabeça.
- Nada coça, quer levar uma coça? - Nãoooo...
Eu preciso esquecer, esquecer que existo, afundar numa melancolia total da memória...
- isso , esqueça... e esta voz , a minha sequer existe... - mas esta voz não era minha...? - Sim, sempre foi sua, duvidou um diz que fosse? - Mas você disse pra eu esquecer de minha própria voz. - Não entendeu ainda Jean, você não tem voz... - Nossa, eu sempre fui mudo...como pude me esquecer... - Esqueça Jean , esqueça... - Mas esquecer dói... - Mas é a salvação... - De quê? - De si mesmo... não sabe que se escondem profundos traumas em sua cabeça... - Mas traumas sempre voltam um dia, tem aquele baguio do recalque e tal. - Este não voltará e sabe por quê? - Por quê? - Porque este trauma recalcou a sua capacidade de recalque... e a traumatizou para sempre no abismo da morte da memória.
- Você é bem eloquente, hein? - Obrigado... Agora vê se me esquece. - Ok... Onde estou quem sou eu? To be or not to be - opa, idioma errado – tupi or not tupi – eita agora é outro contexto, peraí – é... entupi ou não entupi?
Entupido. Onde um homem pode vomitar tudo?
- Tu não podes vomitar... nem sequer salivar direito... engula o choro o escarro e os outros líquidos, sue por dentro, soe pros íntimos, deixe o gaguejar mudo no cérebro... Você está ficando com sono...muito sono.... - Mas espere eu já estou inconsciente! - E daí, está ficando com sono do sono ... Quando eu contra até três você vai despertar. - Um - FRACASSADA! - Dois - Tenebroso tenebroso tenebroso - Dois e meio - Eu tenho duas vozes , tenho duas vozes - Dois e meio e um tiquito de avos - Quem sou eu? Onde estou? Qual o sentido do universo? Deus existe , estacionou o carro na esquina? Onde deixei minhas aspirinas? - Dois e ... quer saber !
Sinto uma enorme pancad... Ai. Tá !tá ! – já esqueci, já esqueci!!!!
O cheiro veio até o nariz (agora é o narrador onisciente contando, ou ainda sou eu mesmo? Te peguei , hein, voyeur de sonhos!?). Ele era doce, doce como as tetas da mamãe...
Doce, como latrina dentro de uma mamadeira num lixão. Nossa, como vim parar aqui?!
Orville Wilbur Ancião
Origem : Nova Iorque
Assunto: Re: Bloomsbury bistro Qui Abr 08, 2010 3:56 pm
Não tem santo que agüente ficar enfiado dentro de um porão se submetendo a experiências que o tal do sacripanta mesmo cismou que deveriam ser feitas e agora ele nem lembra mais o que é isso.
Sim, e repito — pois a redundância pode ser usada como recurso de estilo. Wilbur nem sabia mais o que estava fazendo lá embaixo, ou sabia mas grande porcaria isso, precisava sair, espairecer um pouco, e sobretudo tomar sangue fresco, pois não é vampiricamente possível ficar se alimentando de bolsas de hemocentro e querer manter a sanidade desse jeito. Qual!
Por isso ele ficou gritando feito um lunático lá embaixo, no porão da fábrica desativada, já que não conseguia mais abrir o alçapão de fraco que estava. Ao mesmo tempo, mantinha o lugar sob Ofuscação e nada da "sua" nosferata cúmplice de desatinos — Reba Tweendalines — conseguir achá-lo.
Tão nervoso ficou que sem querer acabou metendo Demência no quarteirão inteiro. Uns reviveram traumas de infância nefastos que a muito custo suas psiques tinham empurrado para o subconsciente, agora totalmente aflorados como cadáveres de Atlântida boiando na pia da cozinha; o transtorno obsessivo-compulsivo de outros se transformou em franca compulsão de repercussões hemorrágicas; quem estava sob efeito de drogas então, fazia loopings no ar e explodia em lírios de artifício.
O Ancião Malkaviano exsudava Demência por todos os fios de cabelo e tornava a inspirá-la pelas unhas. Quando menos esperava, tinha conseguido emergir do alçapão descendo por uma escada de corda do teto. Afinal de contas, "quod est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius est sicut quod est inferius" - e tenho desdito.
Alucinado, ele andava rapidamente por cima da horda de Demenciados que tinha acabado de criar, todo aquele bando de andarilhos e drogados que se amontoavam na fábrica desativada nas noites de frio. Wilbur era lá o cara baixo com seu terninho, cabelo lambido para o lado e ares de coelho apressado de histórias do Lewis Carroll, cruzado com aquele do Monty Python (afinal não podemos esquecer do seu gosto por sangue, que aliás precisava satisfazer urgentemente). Mas não queria qualquer sangue, ele queria o melhor, e por isso foi direto, feito uma locomotiva, para o hospício...
Após alimentar-se de alguns autofágicos e gansers, e mais uma meia dúzia de ecolálicos — tudo à moda cuntactor, pois, para VARIAR, naquela noite ele queria respeitar a Máscara — encaminhou-se, sempre acelerado, para o Bloomsbury bistro, visto que seus Auspícios o avisavam que a sua ajuda era necessária: um Lasombra havia se apresentado para os fregueses do restaurante como um vampiro e dado provas disso sugando outros e estuprando uns. Um doido varrido, um problemático! Precisava chupar depois de violentar para convencer aquelas pessoas de que humano ele não era? Com aquela roupa e tudo mais?!!! Qual! Que tipo de raciocínio mais crisopéico tinha aquele bufão estrambótico?
- ESTÃO TODOS LOUCOS NESSA CIDADE!!! - chegou Wilbur berrando, inconformado. - QUEREM TRANSFORMAR TODA A BENNINGTON NUM MANICÔMIO?!!!
Havia aportado no bistrô em boa hora. Os Justicares com Dominação procuravam Obliviar minuciosamente cada humano que tinha sobrado do ataque de Marek Jaroszýnski. E Ordenar Esquecimentos é o poder mais difícil da Dominação. Pois no lugar das memórias apagadas é preciso inserir outras, uma vez que só deixar o nada no espaço esvaziado da psique, ativa os recursos anamnésicos do cérebro, que nunca vai desistir de tentar resgatar o que lhe foi espoliado contra a vontade enquanto houver fios de meada para reatar. A mente força uma reconstituição das cenas: "Onde dói? Quando começou? Como começou? súbito ou progressivo? Qual o tipo da dor? queimação, pontada, pulsátil, cólica, constritiva, contínua, profunda, superficial? Qual a duração da crise? foi cíclica ou instantânea? É uma dor que se espalha ou não? Qual a intensidade? A dor impede a realização de alguma tarefa? Em que hora do dia é mais forte? Existe alguma coisa que você faça que melhore a dor? E o que a piora? É acompanhada de mais algum sintoma?"
Aos poucos, de acordo com as respostas - sendo este um "diálogo" não necessariamente articulado no plano consciente - a mente vai juntando as pistas até reconstruir a memória bloqueada.
Por isso Marek tomara a precaução de deixar marcas dolorosas em suas vítimas, para que encafifadas sobre como estas coisas poderiam ter acontecido, as mentes exercitadas por fim recuperassem as lembranças da atroz investida.
Mas a equipe de Stratton era muito competente. Tinham se dividido para trabalhar em um por um memórias que justificassem aqueles machucados e inclusive a violação íntima perpetrada pelo Lasombra, cujos tentáculos de escuridão não haviam poupado nem os mais resguardados recessos masculinos. Era um trabalho difícil realmente. Quando Wilbur chegou, até que não lhes pareceu má idéia que todas as vítimas do atentado fossem simplesmente Demenciadas: como pacientes do hospício, quem iria lhes dar crédito ao falarem de sombras phalloscópicas capazes de arrombar tetos e tudo mais? de um vampiro com poder de controlar as trevas como se fossem membros adicionais do próprio corpo que havia detonado o restaurante bem como os pudores, levando gente embora dentro de um casulo flutuante de tenebrosidade?
E aí é que estava. Todo mundo no bistrô ficar louco na mesma noite e mais o sumiço daquelas pessoas seqüestradas por Marek era, para os caçadores de vampiros, o tipo de evento equivalente a um farol num fiorde norueguês. Pádraic Ó Ciardha era peixe pequeno e por isso não causava grande temor entre os membros da Camarilla em Bennington. Mas a Família não podia subestimar a Sociedade de Leopoldo, e já estavam sabendo da recente chegada de um caçador feroz chamado Oscuro Estrapada, que esse não perdoaria nem o Papa se o descobrisse vampiro.
Como consertar o estrago deixado por Marek? Como ocultar os rastros da sua passagem devastadora?
Por momentos parecia que esculhambar de vez a cidade constituía a saída mais sensata. Era o que a mera presença de Wilbur fazia seus colegas pensarem; ele não controlava a própria Demência e a irradiava carnavalescamente por onde ia. Talvez por isso estivera trancado no porão da fábrica desativada por tanto tempo, buscando exercitar meios de controlar seus poderes, mas isso agora não interessava mais para ele. Não lembrava. Não queria saber. E nem sabia disso. O primeiro sujeito que encontrou levou um murro na cara. O segundo, antes de tomar bordoada, foi interrogado:
- Há sete ou oito camelos?
O indivíduo nada respondeu, por nada entender. Então Wilbur arruinou-lhe o nariz.
- Yahiiiihuaaahyoooouhahahaha - sua risada era alucinada e demencial. - Você fica muito mal com o nariz torto.
Quedou-se a olhar para o cidadão, dando risada durante quarenta minutos. Então, subitamente parou de rir e disse:
- Eu lhe dou vinte e quatro horas para fazer uma plástica, ou então vai se arrepender de ter apanhado.
Um terceiro surgiu enquanto o Malkaviano caminhava a passos rápidos em direção ao miolo da comitiva de Justicares, os quais confabulavam — ou assim tentavam — sobre a melhor solução para a crise em pauta, e indagou Wilbur, provavelmente com intenções adulatórias:
- Há sete ou oito camelos, senhor?
O sujeito levou uma bofetada na cara e Wilbur sequer olhou para ele, prosseguindo firme em sua caminhada. Entrementes gritava:
- VIM BUSCAR O QUE É MEU!!!
- E o que é seu? - indagou um Arconte Ventrue que procurava bravamente resistir à Demenciação geral provocada pelo Ancião Malkaviano.
- Iuuuuuuhaaaaaa! - o camarada recebeu um golpe de karatê na testa.
E Wilbur continuou a dar golpes, ao estilo de "O Tigre e o Dragão", estraçalhando vidraças, arrancando lustres com saltos histéricos, arrombando portas e ferindo reputações. Depois voltou a aproximar-se da vítima do seu excêntrico karatê:
- Quero os nomes.
- Que... nomes?
- QUE NOMES?! - não se conformava com o surrealismo do pessoal. Então começou um discurso moralista:
- Pois saibam que estou aqui para resgatar o bom-senso e a racionalidade desse antro de descabeçados que se tornou Bennington. Isso aqui virou um reduto de desequilibrados mentais!
De fato, o cenário já estava bem surrealista antes mesmo de Wilbur chegar: carniçais carregavam material de construção para o restaurante a fim de serem refeitas as partes destruídas por Marek, sendo o rombo no teto o maior desafio. A obsessão de Stratton com a Máscara chegava a esse ponto de insanidade! A vampirada toda parecendo uma cambada de peões de obra!
Segundo a tendência reformista da comunidade avacalhada, Wilbur começou a ajudar na reconstrução do bistrô, que Norton procurava agilizar por meio de sua telecinese Tremere: o Malkaviano se pôs a pichar as paredes; desenhava cenas do Stratton dando saltos ornamentais e de Kappel praticando halterofilismo, os dois muito bem caricaturizados. Fez chifrinhos no Príncipe e colocou sutiã e saia no Justicar-chefe, sem nunca interromper suas risadas ensurdecedoras. Depois começou a surrar as paredes, destruir as mesas, as cadeiras e bater nas pessoas, achando que dava um exemplo de amor às convenções.
- Você é maluco? - perguntou Norton, meio pancada, pois Wilbur não parava de recender Demência.
- Como é que é?
- Eu perguntei se você é maluco.
- Eu sei que você me perguntou se eu sou maluco, você acha que eu sou surdo?
- Eu só perguntei se você é maluco.
- Eu perguntei se você acha que eu sou surdo, você é surdo?
- Não, mas eu quero saber se você é maluco.
- Como é que é?
- Eu perguntei se você é maluco.
- Eu sei que você me perguntou se eu sou maluco, você acha que eu sou surdo?
- Eu não acho que você seja surdo.
- Como é que é?
- Eu perguntei se você é maluco.
- Eu sei que você me perguntou se eu sou maluco, você acha que eu sou surdo?
- Eu acho que você é surdo, sim.
- COMO É QUE É?!!!
- Eu acho que você é surdo E maluco!
- Eu sei que você acha que eu sou surdo, mas por acaso eu perguntei se você me acha maluco.
- Não, mas...
- Então me faça um favor.
- Qual?
- Aproxime-se.
Norton aproximou-se e recebeu uma bofetada na orelha.
- Isso é pra você aprender a ouvir melhor.
- Como é que é? - perguntou o Tremere, com o ouvido dolorido.
Wilbur gritou no ouvido dele:
- MALUCA É A SENHORA SUA VÓ!
Ele ainda foi pesquisar o endereço da avó do Arconte, a fim de enviar uns capangas para surrá-la posteriormente, pelo fato da velha ser maluca.
Depois continuou falando:
- Estou aqui para me apoderar do que é meu de direito.
- E o que é?
- O Principado desta comunidade! A partir de hoje, Bennington será purificada da loucura. Viva a lucidez! — e para comemorar, soltou um morteiro que Reba Tweendalines acabara de lhe trazer em obediência ao pedido telepático do Malkaviano, com quem tinha um infeliz Laço de Sangue... O teto, cuja reconstrução já estava em estágio avançado, foi novamente estraçalhado.
- Você acha que é lúcido ficar destruindo o lugar? - questionou Norton.
- E você acha que é lúcido fazer perguntas cretinas?
- E eu fiz uma pergunta cretina?
- Com essa já são duas.
- O que havia de cretino na pergunta de Norton, senhor Lucidez? — defendeu-o Julie Garceau, irônica.
- Havia que é o óbvio ululante... você sabe o que é ululante? Aquilo que assim ulula, ulula, ulula — ficou gritando "ulululululululululululululululululululululululululululululululululula " no ouvido de Julie — É isso sim que é ulular, aprenda vivenciando, então você reparou, hein? — um novo sopapo no queixo — Não reparou que é o "ÓBVIO ULULANTE" — neste momento fez uma cara de débil mental (tentando ser sarcástico) — o óbvio mais óbvio do Óbvio que o todo Óbvio possa imaginar que é obviamente óbvio que só não é mais óbvio porque é totalmente óbvio e óbvio absolutamente que destruir este lugar é um ato irracional...? Isso não está claro pra você? Realmente não está claro pra você?
- Para mim está claro, mas para você, parece que não está.
- Ah, para mim não está...
- Não, porque embora você considere o óbvio totalizante que destruir o lugar é irracional, você acaba de detoná-lo. Aliás, é ululantemente óbvio que você refez o estrago causado pelo Sabá, para o caso do seu irracionalismo chegar ao ponto de negar os fatos.
- Que fatos?
- VOCÊ SOLTOU UM MORTEIRO QUE EXPLODIU O TETO!
- Vejo que você tem um apego irracional aos fatos.
- Bem...
- Aproxime-se.
SOC POF PLAFT
Wilbur ainda não estava satisfeito:
- A partir de hoje vocês estarão sob o meu domínio. A partir de hoje os novos codinomes de vocês serão Orvilhas. O irracionalismo contaminou a todos de maneira profunda, como estou percebendo. Vim para cá expurgar Bennington do cancro da absurdice. Sim, eu os libertarei.
- Parece que você fez uma comparação entre eu, o magnífico, o sublime Orville Wilbur, e o truão psicodélico do Malkavian?
- Foi uma comparação positiva - respondeu com certo receio... - Disse que você é superior ao próprio fundador do seu clã.
- Sim sim sim sim sim sim sim sim sim sim sim sim sim sim sim sim, só que o que eu sou mais é ser de menos, não foi o que quis dizer?
- Bem, depende do ponto de vista.
Wilbur desceu uma sova de desancar o ancillae Tremere, para ele melhorar seu ponto de vista.
Depois tornou a oferecer seus préstimos para a reconstrução do bistrô: se encarregaria de repintar o teto. Ele ficava rindo ensandecidamente. Balançava a escada sem nenhum propósito enquanto ria; acabou por perder o equilíbrio, caindo com a escada e com o balde de tinta por cima dele. Ainda teve a coragem de colocar a culpa pelo seu acidente no fabricante da escada, que havia sido corrompido pela loucura de Sebastian Stratton.
Numa dessas, caotizou-se a Ordenação de Esquecimentos aplicada pela turma de policiamento do Príncipe, e por isso memórias foram misturadas ou reclassificadas de um jeito louco ao invés dos sobreviventes esquecerem totalmente o terrorismo do Lasombra. Desse modo, Jean se recordava da sua incursão no bistrô como um retorno ao útero: as sombras viscosas e anecóicas de Marek a assumir significado placentário, com o Justicar que tentava Obliviá-lo encarnando uma paródia kitsch de Rasputin, ele próprio Demenciado.
- Tu não podes vomitar... nem sequer salivar direito... engula o choro, o escarro e os outros líquidos, sue por dentro, soe pros íntimos, deixe o gaguejar mudo no cérebro...
Você está ficando com sono... muito sono....
- Mas, espere, eu já estou inconsciente!
- E daí, está ficando com sono do sono... Quando eu contar até três você vai despertar.
- Um
- FRACASSADA!
- Dois
- Tenebroso tenebroso tenebroso
- Dois e meio
- Eu tenho duas vozes, tenho duas vozes!
- Dois e meio e um tiquito de avos
- Quem sou eu? Onde estou? Qual o sentido do universo? Deus existe, estacionou o carro na esquina? Onde deixei minhas aspirinas?
- Dois e... quer saber!
Sinto uma enorme pancad... Ai. Tá! tá! – já esqueci, já esqueci!!!!
Jean Jacques Sans-Cervell acordou em uma caçamba de lixo no beco atrás do restaurante. E Chiappetti Lamb... era um dos que foram levados por Marek como acepipe para Stanislav Morávec.
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Nicole Wallace
Origem : Cardiff Ocupação/função : Diretora da Great White Brotherhood no condado de Swansea
Assunto: Re: Bloomsbury bistro Qua Abr 21, 2010 10:46 pm
Tédio. Tédio e mais tédio.
Amos Starkadder, o superintendente da Great White Brotherhood em Bennington, tinha dito que nesta cidade ela seria mais necessária, muito mais requisitada, do que em Swansea. No condado gaélico, a Fraternidade já atingira o nível de organização ideal, agora praticamente caminhando com as próprias pernas. Ela educara todos os iniciados com uma didática e vocação magisterial que lhes proporcionaram uma rápida capacidade de se independer, já podendo executar até mesmo os Rituais de Totem. Além disso, ela dividia a diretoria com Laverne de Llanddona, Mestre de 28º grau, famosa no meio ocultista, muito embora a Fraternidade não goze do mesmo prestígio da Rosacruz, da Summit Lighthouse ou da Ordem Hermética da Aurora Dourada. Laverne de Llanddona era o nome que conferia um pouco de credibilidade a uma sociedade esotérica feminista e, assim se diz, exageradamente supersticiosa até para os padrões do meio, falando em "contatos imediatos de terceiro grau" com extraterrestres e sete deuses universais que controlam as cores do arco-íris, mananciais destes resplendores na finalidade de abençoar a humanidade com as virtudes próprias de cada vibração cromática. Desse modo, alguns, ou muitos, esotéricos não dão o devido crédito à Grande Fraternidade, como se fosse uma biomidiologia feng-chui que de bruxaria não tem nada.
O que a Rosacruz, a Summit Lighthouse ou a Ordem Hermética da Aurora Dourada valorizam é a capacidade de alguns em CONTROLAR as forças da Natureza, e não o contrário: você servindo de INSTRUMENTO para a atuação benfazeja de autoridades sinárquicas. A visão de que você é apenas um servo das potestades é o ponto principal de divergência entre a Grande Fraternidade e os outros círculos de ocultismo, cuja doutrina tem como eixo central a idéia do poder de certos "privilegiados" sobre as entidades, elementais, energias cósmicas...
Nicole era bem ambiciosa para querer pertencer a uma dessas seitas em que ela seria como uma bruxa onipotente comandando anjos e demônios, mas não demonstrara nenhum poder especial, como telepatia ou telecinese, e também os rituais do Ars Goetia que tentava realizar não davam resultado, de maneira que ela não foi aceita entre os grupos de magia mais prestigiados. Por isso tinha de contentar-se com a Grande Fraternidade, já que desde a infância, a pequena já-recém-nascida-órfã e criada pela parteira (esta também curandeira) era fascinada pela cultura celta, mesmo que alguns historiadores hoje contestem não ser tão "celta" assim. Isso lá importa? Semântica...
Cedo na vida ela acalentava a idéia de ser uma bruxa, e ia para o meio dos bosques sob a lua cheia perfazer cerimônias wiccanas com tudo que tinham direito: o caldeirão e os ingredientes exóticos, a colheita das ervas com athame, as velas, primorosos desenhos de pantáculos na clareira com as cinzas dos incensos, e acabou por localizar uma lojinha esotérica que vendia formas simplificadas de grimórios, os quais lia com a voracidade que lhe faltava fisicamente, trocando refeições e noites por esses estudos proibidos. Até que encontrou um grupelho de wiccanos reconhecido oficialmente pelo New Forest Coven, um dos maiores centros de culto wicca do mundo. Ela fez os ritos de passagem, chegou a conquistar o Anel, mas quando finalmente ganhou seu exemplar do Book of Shadows e estava na hora de mostrar alguns feitiços, verificou-se que nenhum funcionava com ela.
O fundador do New Forest Coven já havia dito que "O Book of Shadows não é uma Bíblia ou um Corão. É um livro pessoal de receitas de feitiços que deram certo para mim. Eu lhes forneço a minha cópia, meus seguidores: nem todos os feitiços irão funcionar para vocês, mas isso é natural. Cada qual possui um dom que faz algumas magias terem êxito enquanto outras só poderão ser realizadas pelos que forem portadores do tipo de energia requerido por elas. Por isso, vocês precisam trabalhar em equipe". Mas parecia faltar a Nicole QUALQUER ENERGIA mágica, pois até a varinha de ariente mais possante do grupo, que supostamente havia pertencido a Helena Blavatsky, era tão útil na mão de Nicole quanto uma colher de pau pra mexer sopa. É claro que os condiscípulos não iriam segregá-la abertamente, porque se prega a igualdade e a fraternidade, mas ela sentia o desdém e a precariedade da cooptação — o não-pertencimento. É natural que numa organização em que o objetivo é ser poderoso e dominar as forças sobrenaturais pelo cabresto, o assim tido por fraco comece a sofrer discriminações.
Todavia, ela não se deixou abater pelo preconceito dos correligionários. Foi em busca de uma seita em que seu desejo de descobrir algo mais além daquilo perceptível pelos sentidos já fosse bem recebido na conta de condição suficiente para ser tratada como uma igual, com respeito, sem nariz torto e intrigas escarninhas pelos cantos. Teve que ser a Great White Brotherhood, que mescla o esoterismo de raízes celtas com o budismo e outras crenças, verdadeiramente inclusivas, do Oriente Remoto.
Na Fraternidade, apreciaram sua capacidade de organização, sua vocação estudiosa incansável e sua dedicação integral ao ponto do sacrifício. Não lhes importava que ela não conseguisse levitar nem dar passes eficazes para a cura de enfermidades, diziam que o dom dela era outro, o mais abençoado deles, o de servir. E por ali ela ficou, até lhe serem confiados cargos de confiança cada vez maiores e ela não apresentar mais nenhuma utilidade em Swansea, por ter feito aquele instituto atingir seu grau máximo de perfeição. Quer dizer, ela acreditou que sua transferência se dava porque precisavam mais dela em Bennington do que em Swansea, afinal a Grande Fraternidade nunca havia sido insincera com ela, e se Nicole tinha um sexto sentido, este se prestava a detectar o grau de veracidade, de autenticidade, das pessoas.
Contudo, o grupo em Bennington era muito pequeno e todos competentes demais para ela ser tão necessária quanto gostaria. Até que uma colega da unidade, Danielle, sugeriu que ela saísse mais "pra paquerar", conhecer pessoas diferentes, e se prontificou a arrancar Nicole de suas leituras e escritos para levá-la aos pontos mais badalados da cidade.
Bennington, porém, não tinha nada de badalado. Cidade extremamente conservadora, mesmo a taverna do velho Macaulay, conhecida por oferecer prostitutas — clandestinamente, é claro — era bem comportada perto dos pubs de Swansea!
Mas, na verdade, não era esse o problema para Nicole ter dificuldade em iniciar relacionamentos românticos (e principalmente em mantê-los). O problema é que a galesa tinha um modelo de homem muito definido em sua cabeça para o seu coração — e corpo — e se não fosse esse, não seria ninguém. "Antes só do que mal acompanhada." Ela não aceitava qualquer coisa "para não ficar sozinha", como tantas mulheres que conhecia faziam. Ela queria O Homem perfeito, e por isso se conformara em ser uma solitária profissional.
Desde pequena fantasiava o futuro companheiro. Escrevia histórias românticas sobre ele e o desenhava. Ao reler esses textos infantis, notava destacar-se o aspecto paternal do homem idealizado: ele era do tipo mentor e todo-sapiente, como um druida das histórias de James Macpherson (os "celtomaníacos" me entenderão). Não se afigurava exatamente bonito, pelos padrões hollywoodianos, e isso transformava seu Oráculo em alguém ainda mais especial para ela; como se a sua paixão por ele a tornasse mais singular, ímpar, por reconhecer nele a beleza para a qual a frivolidade dos outros cegava-os. Ele era o Alto Sacerdote que queria ter encontrado nos círculos mágicos freqüentados por ela, mas nem de longe um homem como ele apareceu para arrancá-la do seu individualismo resignado, esponjoso, inapetente.
Entretanto, de certo modo, ele se fazia tão real para o psiquismo anelante de Nicole que era como se dobrando a próxima esquina fosse encontrá-lo. As esquinas se sucediam e quanto mais decepções levava, mais a vontade de encontrá-lo se fortalecia. Isso que era o mais frustrante. Tinha sonhos com ele. Continuava a escrever alguns romances cor-de-rosa para leitura de costureiras, domésticas, babás, vendidos por publicadoras daqueles livros de banca de jornal, tipo Sabrina, Julia e Bianca, e ele sempre era o herói inacessível de suas histórias. "The forbidden Lord" tinha sido um bestseller nesse gênero de "literatura", autora famosa de publicações na linha fast-food sentimental. Ele era o mestre, o conselheiro, o confidente, mas, estranhamente, ela se constrangia em descrever cenas de amor físico entre ele e as protagonistas das suas histórias. Seria como profanar um ente mental que se tornara uma espécie de demogórgon para ela.
No Bloomsbury bistro, acompanhada por Danielle, Nicole suspirava revirando a salada de frutas com a colher como se preparasse alguma triaga num caldeirão, pouco inspirada para levar além disso sua interação com o alimento, quando alguma coisa um pouco mais interessante aconteceu, para resgatá-la da suspiragem alienante inspirada por uma saudade insensata, de algo que nunca tivera: Chiappetti Lamb e Jean Jacques Sans-Cervell começaram a avacalhar o concerto de Mozart, arrancando assovios e ovações dela, a única por sinal a apoiar a subversão artística tentada por eles.
O que se sucedeu a isso... ela não lembrava. Sabia que tinha acontecido algo muito horrível. Não via sua amiga, Danielle. O restaurante estava em ruínas. O hiato entre a apresentação dos trurrealistas e a visão do bistrô como destroços de um bombardeio da Luftwaffe estava preenchido de delírios cômicos. Ela sentia apenas vagamente que medo era a emoção que deveria estar experimentando, e se percebeu trêmula debaixo de uma mesa, abraçada às próprias pernas, seus penduricalhos de pentagramas e talismãs a tilintar feito os sinos da catedral.
Aquela mioclonia geral não era causada pelo frio, muito embora tivesse começado a chover torrencialmente - os cântaros se despejavam do céu para dentro do restaurante através do rombo no teto, o qual ela se esforçava para entender. A chuva tornava a fresca noite ainda mais fria, mas ela havia escolhido um longo vestido indiano de mangas compridas e calçava botas de cano alto. Aliás, sua franja ruiva colava-se à testa com o suor. Aos poucos dava-se conta de que aquele frenesi de hilaridade que se apossara dela parecia ser o motivo do medo, mais do que a aparente eclosão de uma III Guerra Mundial. Era aquele baixinho ali, de terninho e cabelo lambido pro lado, a pichar nas paredes caricaturas dos desenhos dela - do homem de seus sonhos - que poderia fazê-la perder a si mesma no caos do seu inconsciente, o tapete pra baixo do qual traumas e desequilíbrios indomáveis pela razão são empurrados, terreno em que, dizem os terapeutas anti-freudianos, é melhor não mexer. A risada dele era contagiante e ela sentia que iria entrar num looping invencível de gargalhar incessante até que a morte pusesse fim a tal surto de histeria, se não fosse arrancada desse ouroboros de demência pela aparição sólida, real, encarnada, do seu paladino!
Ele acabara de assomar às portas do bistrô com uma expressão de fúria contida, encarando com olhar calcinante o homenzinho serelepe. Se é que estava louca, tinha que aproveitar aquele momento: poderia ser que a loucura não durasse e ela voltasse à realidade, de espera, estase, de vazio, então precisava desfrutar a magia, o êxtase, a plenitude que aquele bendito delírio lhe propiciava. Tirando vantagem do embalo de libertação absoluta do ID decretada pela exuberância dionisíaca do baixinho casquinante, dirigiu-se audaciosamente até onde sobressaía a ultra-imperial visão do seu messias. Tocou-lhe o rosto molhado e frio pela chuva enregelante, e o tato correspondeu com um realismo que os sonhos mais vívidos jamais lhe haviam rendido! O mau humor que pairava na fronte dele, o sobrecenho carregado, os olhos escuros de fervorosa severidade, o austero sobretudo do tipo Ulster, de gola de manto, cingindo o tórax maciço e soberbo com uma modéstia e pudor clericais, e a estatura sobredesdenhosa do titã, nada disso a intimidava. Era como se Nicole o tivesse criado, e ela era a única que conhecia, para além da inclemência daquele warlock rígido, intransigente, a natureza patronal, zelosa, protetora dele.
Deixou-se estar ali, exposta às intempéries; o que é uma tempestade para quem já está molhada até as profundezas?