Acaba de ser inaugurada a boate mais elegante da cidade.
Trata-se, porém, de uma boite no sentido francês do termo mesmo, para resgatar um pouco desse lado da cultura vermoniana: não é um lugar para "música" putz-putz, fumacê ilegal, paqueras adolescentes ou vulgaridades. Está mais para um bar chic de solteiros com uma ampla pista de dança, apresentações de jazz ao vivo e bartenders que fazem coquetéis com malabarismos a la Brian Flanagan (especialistas em bar etiquette, cocktail preparation e mixology, como se diz na língua inglesa).
O único problema do lugar é que os preços são bem salgados nesta estilosa boate de elite.
Anne Marrie Wills
Origem : Nova York Ocupação/função : Programadora
Assunto: Re: Les Papilles Dom Mar 14, 2010 6:50 pm
Anne Marrie Wills. Esse era o nome que figurava no crachá sobre a bancada do banheiro feminino, no terceiro andar, da Spectron Pharmaceutical Laboratories. Sua dona estava lavando o rosto com vontade, os cabelos loiros um pouco molhados devido o ato, a blusa branca de botões também sofrera com a água, deixando visível a alça do sutiã, as mangas da mesma estavam dobradas até os cotovelos. As sandálias altas já estavam abandonadas a um canto da parede, e os pés agradeciam poder tocar o chão de mármore frio, apesar da meia-calça. A saia preta na altura do joelho parecia a única intacta no processo. Anne analisou-se no espelho após mais uma leva de água no rosto, a maquiagem já não existia mais, e a impressão que tinha de si mesma era de uma mulher descuidada com sua aparência. Mas também pudera, trabalhar praticamente sozinha naquela imensa empresa não era das tarefas mais fáceis. Arthur, seu único colega em programação havia passado as últimas quatro horas cochilando em sua mesa de trabalho, depois de acabar com uma caixa de Donuts e uma Coca-Cola de dois litros. Tal desleixo se dava ao fato de já ser um funcionário efetivado, enquanto ela ainda tinha mais um ano de experiência para conseguir concluir sua efetivação. Ao aceitar os dois anos de experiência, não imaginara que trabalharia em dobro para atender todo e qualquer problema na informática da empresa. Pelo menos não havia quem tivesse a coragem de afirmar que não se esforçava.
Já passava de onze da noite quando Anne ouviu o elevador funcionar. Provavelmente seria Sebastian Stratton iniciando seu "dia de trabalho", além dela só havia as funcionárias da limpeza, e nenhuma delas utilizava o elevador, mesmo quando nos andares mais altos do prédio, o motivo ela desconhecia. Nesse ano em que trabalhara na SPL ela se acostumara com a rotina do chefe, sempre chegando à noite, e provavelmente saindo antes do sol nascer. Ninguém poderia reclamar de tal rotina, já que Sebastian Stratton era o homem de negócios mais falado em Vermont, o modo como ele conseguia isso era o de menos. Ela própria preferiria dormir o dia inteiro e trabalhar somente à noite, quando não havia vinte reclamações em seu telefone "Meu computador não liga", "A internet não está conectando", "O computador travou minha planilha de custos", "Venha já consertar essa máquina estúpida", e os famosos erros de estagiários: "Anne, me ajuda antes que o Horace chegue aqui, eu acho que cliquei no botão errado e a tela apagou... Ele precisa desse relatório pra daqui a pouco. Me ajuda pelo amor de Deus" . Assim era a vida de escrava que levava na Spectron Pharmaceutical Laboratories, mas ela também não podia reclamar, apesar do salário estar longe do que costumava ganhar em Nova York, era suficiente pra pagar sua casa, comida, transporte e alguns luxos. Anne ainda estava tentando encontrar algum cliente em sua outra área para facilitar suas despesas, mas Bennington tinha se mostrado uma cidade moralista demais para quem vivera na Big Apple.
Anne pegou o crachá abandonado e o jogou dentro da sua pasta de trabalho preta, calçou as sandálias sem se importar em ajeitar as correias, e seguiu em direção ao elevador. Conforme imaginara estava parado no andar de Stratton, apertou o botão de chamada e procurou as chaves do carro na pasta enquanto esperava. Um dia ainda seria capaz de demitir Arthur de sua vida mansa de enfeite por todo o trabalho que deixara com ela, ainda mais depois de hoje. O motivo de estar saindo depois das onze da noite fora a incapacidade de Arthur de resolver problemas. O sistema do terceiro andar inteiro entrara em pane às 17:00, e Arthur devia colocá-lo em funcionamento até as 18:00, a tempo dos relatórios para a reunião de amanhã às sete da manhã serem impressos. O bug, que seria facilmente resolvido com a utilização de um programa próprio no computador central, transformara-se em encrenca quando Arthur tentara transferir os arquivos pro quarto andar. Resultado: O quarto andar inteiro parou. às 18:00 não havia relatório impresso, todos estavam indo para suas casa, e isso incluía... Arthur. E lá ficara Anne Marrie, corrigindo o problema de cinquenta computadores, e ainda imprimindo os relatórios anuais, já que eles deveriam estar sobre a mesa do Diretor de Orçamento às sete da manhã.
O elevador abriu suas portas e Anne adentrou o pequeno compartimento de metal, a chave do carro finalmente em sua mão. Apertou o botão do estacionamento do Subsolo, onde costumava deixar seu Ford e aguardou. A música do elevador não era tão irritante como a anterior, ouvir Garota de Ipanema por um mês inteiro, mesmo que aos pedaços, e em português, não era seu ideal de relaxamento. Agora quem tocava no pequeno compartimento de metal era Ray Charles, Bye Bye Love, se não se enganava. Desde que chegara à Vermont logo percebera que não ouviria muita música POP ou Rock, mas o clássico Jazz. Anne acabara se afeiçoando ao estilo, que realmente tinha uma melodia, e letra, melhor do que as músicas de sucesso em Nova York. Acabara cedendo de vez quando comprou uma coletânea de dez CDs com o melhor do Jazz americano, apesar do uso do MP3 ser absurdamente mais popular, havia um certo charme em colocar um CD no som, muito parecido a quando se colocava um disco de vinil na vitrola. Assim que deixou o elevador e se dirigiu ao Ford estacionado, Anne já cantarolava em voz baixa a música de Ray. Para manter o clima, trocou o CD do carro pelo que continha as melhores músicas do astro do Jazz e ligou o motor. O vigia da noite sorriu-lhe quando passou pelo portão da empresa e ganhou a rua.
Em dias normais ela teria seguido a Leste pela Main Avenue, virado à esquerda na Silver Street e seguido até a Crescent Boulevard, onde seu prédio se encontrava. Teria subido o elevador, se livrado de todas as roupas antes de chegar no banheiro, e desfrutado de um demorado banho de ducha antes de cair na cama sem ao menos jantar. Mas hoje era a inauguração da única casa noturna de Bennington, e digo casa noturna por não ser nada parecida com uma boate. Les Papilles era um lugar para a elite de Vermont, com boa música, leia-se Jazz, preços altíssimos e barmans equilibristas. Mesmo assim era uma casa noturna, onde não se devia chegar acompanhado, mas assim sairia com um pouco de sorte. Anne queria muito ir à inauguração do local, e sabia que se fosse à sua casa antes, só chegaria ao seu destino final às duas da manhã, e encontraria as portas fechadas. Outro motivo para Arthur pagar por seus pecados, a faria ir ao melhor lugar da cidade vestida como uma secretária. Anne afugentou os pensamentos ruins e estacionou a duas quadras do lugar, já havia certo movimento e ela ainda não se preparara apropriadamente. Acendendo a lâmpada interna do carro, Anne retirou um pequeno estojo de maquiagem de sua pasta. Com delicadeza, refez a maquiagem, sempre em tons muito claros e sóbrios, a única exceção era o batom vermelho, não muito escuro, mas que realçava seus lábios, os olhos estavam delineados pelo lápis marrom, aumentando-os um pouco. Por fim prendeu os cabelos em um meio rabo, dando um ar não muito profissional graças aos seus cabelos estarem ondulados.
Antes de deixar o carro Anne arrumou as sandálias em seus pés e desabotoou a camisa branca que vestia, jogou-a no banco de trás e resgatou de lá uma blusa preta de seda, bem mais alinhada para um lugar como Les Papilles. Desde que começara a trabalhar lá, e percebera quantas noites ela passaria ali, Anne havia aprendido a deixar ao menos uma blusa no carro para ocasiões especiais. Uma blusa era mais prática, e facilmente mudava o visual de trabalho, já que a saia preta era um coringa quando se tratava de moda. Além disso, seria muito inconveniente tentar se vestir completamente e ser abordada por um guarda daquela cidadezinha tão conservadora. Deu uma última olhada no espelho, pegou sua "mini-bolsa", que também usava como carteira, e saiu do carro, travando-o. Ela caminhou as duas quadras em direção ao Les Papilles sem pressa, a maioria dos clientes estaria chegando de carro e entregando as chaves ao manobrista, mas ela precisava passar a idéia de que morava próximo e só por isso viera a pé. Talvez nem essa desculpa funcionasse, ela sabia, mas era melhor do que explicar porque dirigia um Ford, ou como se trocara no carro.
Quando cruzou a porta do lugar, Anne era só sorriso. Exatamente como previra o ambiente era decorado com muito bom gosto, o pequeno palco para as apresentações de Jazz ainda não estava funcionando, mas a disposição dos instrumentos indicava que logo começariam a tocar. O bar era todo feito em madeira, elegantes garçons desfilavam dele para pequenas mesinhas ao redor da pista de dança, barmans treinados executavam a preparação de drinks com a maestria de equilibristas. Alguns jovens da elite já haviam chegado, a maioria dos homens se prostrava no bar, tomando uísques de 15 anos, ou fumando um charuto cubano. As mulheres pareciam andar em grupo, sempre em número mínimo de três, sentadas em uma mesinha, tagarelando com sorrisos muito brancos e cabelos perfeitamente penteados. Anne já fora uma delas, rodeada de amigas e de dinheiro, mas essa era a vida que havia escolhido afinal, e não trocaria sua liberdade por nenhuma aliança de diamante, não que recusaria uma. Anne acomodou-se em uma das mesinhas tentando manter sua pose e estirpe, queixo sempre erguido, gestos delicados e sorrisos não muito exagerados. Recusara a bebida ao garçom, e esperara que algum dos homens no local a pagasse um drink. Seu dinheiro era contado e não podia se dar ao luxo de gastá-lo tão cedo, além do mais, mulheres como ela conseguiam tudo o que queriam. Esperava que em Vermont esse fato não mudasse.
Behnam Davor
Origem : Bosnia Herzegovina Ocupação/função : bancário (analista de negócios)
Assunto: Re: Les Papilles Ter Mar 16, 2010 4:27 pm
Ele não podia reclamar dos Estados Unidos. Haviam lhe dito, antes de sair de Tomislavgrad, que os americanos são xenofóbicos e ele seria tratado como escória — o que tinha impacto sobre o seu sentimento croata de inferioridade. Mas vinha procurando emprego há mais de 5 anos em seu país, e este mercado de trabalho estava tão falido que não achou que poderia ser pior nos Estados Unidos. E não foi. Escolheu o Estado certo, com maior índice de empregabilidade, não que soubesse que Vermont era tudo isso, mas de Nova Iorque para Bennington são apenas três horas de viagem, e Behnam "took the chances", já que não queria ficar lavando prato num restaurante quando tinha formação em administração de empresas.
Não logrou obter um emprego de nível universitário em Bennington, mas pelo menos lidava com altas figuras do mercado de trabalho em seu singelo posto bancário de assistente em análise de crédito. Costuma lembrar de um verso bíblico que diz "A lagartixa pode ser apanhada com as mãos. E no entanto ela anda pelos palácios dos reis." Conseguia entender esse enigma de Salomão. Ele era uma lagartixa. Sentia-se uma lagartixa. Mas fazia uma análise prévia dos pedidos de crédito de empresas da estatura de uma Spectron Pharmaceutical Labs... Não que ele fosse fazer alguma diferença nisso, pois a ordem a este respeito era nem incomodar o chefe repassando sua prévia: para a Spectron Pharmaceutical Laboratories era para dizer sempre "sim", não importava o volume de dinheiro envolvido.
Na festa de 100 anos de existência do Bank of Bennington, a Appleton Roland L Inc, mais prestigiosa casa de festas da cidade, geralmente alugada só para eventos da nata da socialite, estava lá o macilento Behnam Davor num smoking de brechó e sua cara de lagartixa pisada - mas estava lá. Foi quando teve a oportunidade de conhecer o famoso Sebastian Stratton e sua esposa Vanora, o casal mais elegante e majestoso que já vira pessoalmente. Para a vidinha pior do que prosaica de Behnam, só a oportunidade de contemplar de perto aquela esplêndida dupla de magnatas era um privilégio.
E se contentou em entupir-se das comidas caras da festa sem ousar sequer trocar olhares com as moças riquíssimas e bem-vestidas que apareciam por lá, suas únicas companhias femininas sendo a rechonchuda Monica da cobrança, a até que bonita mas extremamente problemática operadora de caixa do Personnalité e uma engenheira de software que aparentava ter uns 90 anos mas, paradoxalmente, se dizia vegetariana, desportista e abstêmia. No resto da equipe de baixo status, do mesmo nível de Benham, mas convidado para o evento a fim de vender a impressão de política de RH democrática e inclusiva, não havia muito mais mulheres, e estas eram casadas. Não seria em ambiente de trabalho que Benham arrumaria uma companheira.
Mas não foi por causa disso que ele compareceu na inauguração do Les Papilles.
Na madrugada anterior, fora despertado por um telefonema quase inaudível de Bogdan Raskovic, seu guru em Tomislavgrad. Ele era um sérvio metido a monge tibetano em quem Behnam procurara algum alívio para seus conflitos emocionais. Sendo típico filho do meio de uma família onde o pai sofre de um temperamento instável e vive berrando com esposa e filhos, e a mãe se faz de submissa para não apanhar mas pelas costas do marido tem vida dupla com homens um pouco mais carinhosos, a cabeça de Behnam vivia recheada de culpa, tristeza e confusão. Raskovic não resolvera esses problemas, mas lhe ensinara a pelo menos "calar a mente": o rapaz veio a descobrir que a meditação transcendental das religiões asiáticas é um mecanismo de fuga bastante eficiente. Não engorda, não é tóxica, não é imoral, não cura — mas tem certo poder analgésico.
Eram 3 da manhã quando Raskovic lhe telefonou - na chamada "hora morta" pelos ocultistas. O guru estava fora de si, e não parecia falar coisa com coisa. A qualidade da ligação também era péssima mas algumas coisas Behnam entendeu distintamente: "Anne Marrie Wills corre perigo." "Você precisa avisá-la." "Stratton é um vampiro."
Apesar do hábito de Raskovic de praticar alpinismo nas paredes de sua cabana, ele não tinha um histórico sólido de loucura. Também não tinha a menor condição de saber quem era "Anne Marrie Wills", já Behnam sim: logo na manhã seguinte, consultou a folha de pagamentos da Spectron, que necessariamente integrava a pasta para análise de créditos, e viu o nome exatamente como Raskovic havia pronunciado em seus rascantes acentos sérvios — Anne Marrie Wills.
Tentou telefonar para o guru buscando entender melhor o que estava acontecendo, mas tudo que o outro lado da linha lhe ofereceu foi um grito alucinado de Raskovic e um relato desesperado de que as apsaras de Shambhala não o deixavam mais dormir, intercedendo pela tal da Wills; ficavam dançando nuas ao redor dele, tirando-lhe a paz do espírito, e principalmente do corpo, até que ele se interessasse para perquirir o que poderia fazer por alguém que não conhecia e elas respondessem que Behnam a conhecia...
- Então por que vocês não vão atormentá-lo? - indagara Raskovic.
- Porque Behnam é guei e nosso tipo de pressão não causaria o mesmo efeito sobre ele.
Mortificado com essa baboseira, o croata decidiu deixar aquele assunto de lado, batendo o telefone no gancho ao mesmo tempo em que, interiormente, mandava Raskovic pro inferno. De todo o tremendo absurdo da história, só uma coisa ficava martelando em sua cabeça: a acusação de ser guei. É verdade que nunca tivera sucesso entre as mulheres, mas quer dizer que só porque você é virgem você é viado? De tal maneira ficou incomodado que, tão-somente em função de sua hombridade ferida, desejou conhecer a famigerada Anne.
Ele semi-acreditava na religião de Raskovic, podia ser que as apsaras estivessem apontando para o rapaz a sua alma gêmea, pois aquela parte em que Anne Marrie Wills era apresentada como a futura vítima de um vampiro não encontrou abrigo nos pensamentos de Behnam nem por um minuto. Era no máximo engraçado pensar em Stratton como sendo um vampiro, para o que comparações com o Dracula de Bela Lugosi eram evocadas pela mente do moço. Ao seu ver, não havia no folclore popular figuras mais ridículas que os vampiros, e Stratton estava longe de ser um homem ridículo.
Ao contrário do tipo de impressão que Raskovic quisera lhe incutir, foi impelido por bons presságios que Behnam acabou indo até a Spectron em sua portentosa, invejável, beatífica motoca Yamaha Rd 200, cujo escapamento por si só poderia dar conta de todos os efeitos pirotécnicos da Abertura 1812 de Tchaikovsky.
Na recepção, pediu para falar com Anne Marrie Wills. A funcionária do setor ligou para o departamento de informática e foi atendida por Arthur, que preferindo conservar desembaraçada de interrupções a sua sacrossanta ociosidade disse que Anne não estava disponível porquanto atolada em serviço. De fato, o dela e o dele. O mínimo que ele podia fazer por ela era mantê-la livre de distrações. Behnam disse que voltaria no fim do expediente dela e voltou - mas Anne ainda não tinha saído.
Ele sentou-se em um dos sofás da recepção para esperá-la e foi tomado de um torpor irresistível, como deve ter sido o de Adão quando posto para dormir a fim de lhe ser retirada uma costela. E Behnam sonhou. Sonhou com uma grande saga, em que era caçado por monstruosidades que desejavam lhe retirar as costelas e realmente esculpi-las, a fim de suprir a perda de ossos de uma mulher muito pálida que fora esmigalhada debaixo de um caminhão.
Bem entendido: tratava-se de um sonho quase epopéico; ele tinha visto um homem alto, de expressão muito severa, nariz adunco, abrigado por um respeitável sobretudo ocre, "erguer" o caminhão telecineticamente e arremessá-lo contra aquela mulher, que parecia a Cher depois de mais 38 cirurgias plásticas. Pasmo, Behnam a assistiu sobreviver, inobstante não pudesse mais mover-se, ossos triturados pela compressão do imenso veículo. Os outros indivíduos que estavam com ela volveram para o croata suas caras de poucos amigos, o qual até então julgava estar bem escondido atrás de uma árvore distante, e no sonho ele soube que queriam seus ossos para dar forma ao hambúrguer que a feiosa tinha virado. O que parecia comandar o grupo dizia "A Geração dela não é boa e seus ossos já passaram por muitas manipulações. Vamos lhe dar um esqueleto novo." Behnam corria e se deparava com uma mulher loira muito bonita, que ele entendeu, graças àquela onisciência própria dos sonhos, ser Anne Marrie Wills.
Por um lado se sentiu seguro ao encontrar com ela. Por outro, ela dizia-lhe em tom de comando: "Você não vai se lembrar de nada disso". E ele acordava em sua própria cama, seguro, livre. Mas aquele Behnam na cama berrava para o que estava sonhando: você vai deixá-la enfrentando aquelas feras sozinha?
Despertou encharcado de suor, coração disparado, com todas as pessoas naquele patamar do prédio olhando para ele, cujo rosto estava decomposto de agonia. Ele se compenetrou de que Anne realmente corria perigo. Lembrava-se da sensação no sonho de que ela era, de algum modo, poderosa o bastante para lidar com aqueles monstros. Mas para isso ela mesma havia se transformado num monstro, a única exceção é que não exteriormente, como eles. Suas íris tinham ganhado uma coloração avermelhada, fazendo-o lembrar de alguém, só não sabia precisar quem.
Ele tremia visivelmente e, com uma sede de camelo, esvaziou quase metade de um bebedor de sifão ali perto. Assustou ao reparar a hora: eram quase 11 da noite. A recepcionista tinha ido embora e em seu lugar o próprio segurança monitorava o já minguado tráfego de pessoas. Behnam gelou ao ver Sebastian Stratton assomando na entrada da empresa para o seu "dia de trabalho". A pitoresca rotina profissional desse homem dos altos escalões não era segredo para ninguém na tradicional Bennington, onde a vida do coveiro era manchete na fofocas do dia - que se diria a de um dignitário como Stratton.
Era a primeira vez que os olhos de Stratton cruzavam os de Behnam. Os cabelos do moço se arrepiaram como as cerdas de uma piaçava - os cabelos do corpo inteiro. As íris de Stratton tinham uma coloração estranhamente avermelhada, ou Behnam ainda estava sonhando. O diretor da empresa parou e ficou encarando o croata, que desconcertado deu de costas sob o pretexto de encher mais um copo no sifão, embora já não agüentasse mais beber água. Suas mãos tremiam tanto que o líquido ficava parecendo uma mistura de pepsi com mentol, chegando ao ponto de lhe borrifar a cara. Ou era ele mesmo que queria se refrescar. Sentia o rosto em brasa. Sentia que havia perdido um pedaço da alma com aquela conexão visual. Que de algum modo aquele homem passara a deter uma vantagem sobre ele dali em diante; que para experimentar mais liberdade que isso, uma solitária em penitenciária de segurança máxima não parecia má idéia. Só se virou de novo quando ouviu a porta do elevador se abrir e fechar: era Stratton subindo para seu escritório, pois além dele, de Behnam e do porteiro já não restara mais ninguém ali no térreo.
Foi quando ocorreu a Behnam o azar que tivera ao seu caminho cruzar com o de Stratton. Por que descargas d'água o diretor não subira diretamente do subsolo - do estacionamento - para seu escritório? Por que fora entrar na empresa justo pelo patamar onde Behnam se encontrava? Então o rapaz atinou que Anne já podia ter ido embora faz tempo; se ela tinha carro, passaria direto pelo térreo, saindo pelo subsolo - e ele esperando ali na recepção feito o idiota que sempre fora.
Arrastou os pés para fora do edifício com uma sensação esmagadora de fracasso. Agora, mais que nunca, ele sentia que devia avisar Anne de algum perigo terrível. Mas qual? O que iria dizer-lhe, de qualquer forma? A melhor opção era voltar para casa e esquecer aquela loucura toda. Ele ainda tremia, taquicárdico, e corria o risco de fazer um feio abismal desmaiando ali na frente do gorila que servia de porteiro e segurança.
Mas o destino se impunha impávido: foi sair da empresa e ver um velho Ford emergindo da rampa do estacionamento ao lado da escadaria de entrada, no qual perfeitamente divisou ao volante a mulher dos seus sonhos. Ou seria melhor dizer, a mulher dos seus pesadelos. A iluminação do jardim da fachada e as feições marcantes, chamativas da bela moça, eram suficientes para garantir a Behnam que ele não estava enganado. Rapidamente pôs-se a segui-la, com o máximo de discrição que sua motoca permitia.
Ela estacionou numa rua lotada de veículos, sem dúvida por causa da inauguração do Les Papilles. O evento vinha sendo motivo para badalação dos jornais já fazia um tempo, principalmente graças às histórias do sensacionalista Jean Jacques Sans-Cervell, colunista do L' imonde, de que o terreno sobre o qual aquela boate fora construída servira de sepultura a numerosas vítimas de Charles Manson.
Behnam teve que reunir muita coragem para abordar Anne Marrie Wills, principalmente quando se viu paralisado ante a beldade em roupas íntimas: ela havia escolhido um lugar mais afastado da rua para estacionar o carro, por sinal querendo aproveitar a obscuridade daquele canto a fim de se trocar como fazia - mas deixara a luz de teto do carro acesa... Quem continuava na obscuridade era Behnam, acostumado a tal condição abstrusa.
Ela saiu do carro com passos decididos - e decididamente linda - e Behnam, sempre ansioso na hora de falar com uma mulher bonita, hesitou por instantes. Por instantes demais: ela acabou entrando na boate, cujo ingresso seria uma facada para ele. Mas se depois do insólito telefonema de Raskovic, do sonho agourento e das incríveis coincidências da tarde ele tivesse seguido Anne até ali para nada, iria sentir-se muito pior consigo mesmo que o normal, e isso seria caso de suicídio.
Não foi difícil localizar Anne Marrie Wills. Ela sobressaía na multidão. Sem dúvida alguma não havia mulher mais bonita no lugar do que ela. Isso tornava as coisas muito mais difíceis para Behnam. Ajudava o fato de estar desacompanhada e ele imaginava que isto ocorria não por ela haver acabado de chegar e sim porque todos os outros homens ali deviam se sentir tão intimidados quanto ele: não era só que Anne era bonita; tinha uma expressão determinada, transpirava segurança. Ele se sentia como o Charlie Brown perto da "garotinha ruiva". Sua boca secava como se fosse viciado em opióide: ficava difícil mover a língua e até mesmo descolar os lábios.
Mas já havia pagado 50 dólares a fim de estar ali e para ele isso era muito dinheiro. Melhor terminar logo com aquela tortura. Respirando fundo, caminhou até a mesa à qual se achava Anne. Foi só quando estava parado do lado dela como um estafermo que refletiu duas vezes sobre o teor da conversa que estava ali para entabular com ela. Aí entrou em pânico, mas se saísse correndo, como era seu desejo, faria mais feio ainda e era disto que tinha medo. Não se achava minimamente atraente e fazer mais feio que aquilo, também seria empurrá-lo dali para uma banheira com água quente e uma gilete afiada - para os pulsos.
Boca ainda seca, puxou pela casaca um garçom que passava ao lado, fazendo para ele "dois" com os dedos. Alguma coisa no semblante aterrado de Behnam fez o garçom entender e ficar com pena de perguntar "dois o quê?" — Era fácil perceber que aquele magrelo com cara de porta estava dando passo maior que as pernas com aquela moça. Voltou ali com dois Apple Martinis, um coquetel de frutas de baixo teor alcoólico e bastante refrescante. Nesse ínterim Behnam ficara ali olhando para Anne com um sorriso sem graça, à espera de ser convidado a sentar. Ela se quedou observando-o como que num ar de desafio (para ele, qualquer coisa vindo daquela mulher, até um sorriso, seria um desafio) e ele entendeu, ou achou que devia entender assim, que se a iniciativa havia sido sua que fosse até o fim com ela... Rapidamente tomou assento à mesa, como se com medo que se não fizesse isso logo ela o expulsaria a machadada.
Os drinks chegaram e ele virou o dele de uma talagada só. Ficou desgostoso:
- Você não tem nada com pinga ou com tequila? - perguntou para o garçom. - Temos um coquetel que é como uma porretada na nuca. - Como é? - Chama "Satan Lives". - Vai esse.
Com aquele nome, Behnam não precisava saber especificações de receita. Necessitava de um nocaute, pois percebia que estava determinado a contar para ela as loucuras de sua tarde. Nervoso, não sabendo por onde começar, as mãos se retorciam mutuamente e ele disparou:
- Esta tarde eu sonhei com você.
Ousando erguer os olhos para ela, suas faces arderam como jalapeño e ele tornou a se perguntar que força era aquela que o mantinha ali quando, para sua razão, ele só podia estar louco.
- Entenda, não foi nada de obsceno - ele correu emendar, apreensivo, decoroso. - As íris dos seus olhos eram vermelhas e você me salvava de um bando de monstros que queriam meus ossos pra um transplante numa mulher que parecia ter sido vítima de um Braquium Remendo por parte do Gilderoy Lockhart — e deu uma risadinha, achando que estava conseguindo quebrar o gelo - dificilmente, caso ela não tivesse lido Harry Potter. Ele percebia estar fazendo um papel ridículo, porque Harry Potter não é uma referência que se faça em uma conversa adulta, madura. É coisa de menina.
Seus ombros despencaram ante o fracasso inevitável; por nada no mundo ela iria acreditar nele, tomando tudo como a cantada mais ridícula que já havia recebido. Ele meneou a cabeça e a descansou na mão trêmula, olhos cravados na mesa, inibidos.
- Escute, fique longe de Sebastian Stratton, ok? Ele tem más intenções com você. É tudo que posso dizer. Eu sei. Só acredite que eu sei.
Chegou o coquetel Derruba-Golias. Ele tratou de beber para afogar a consciência que já procurara apaziguar dando o aviso, por mais que não tivesse se empenhado para fazê-lo parecer convincente. Ele era pessimista demais para querer contar a história em detalhes, já antecipadamente se desanimando de que não iria persuadi-la.
[off] As alusões neste post a todos os personagens que não são meus foram autorizadas pelos respectivos players. [/off]
Anne Marrie Wills
Origem : Nova York Ocupação/função : Programadora
Assunto: Re: Les Papilles Sex Mar 19, 2010 12:12 am
(AEEEEEEEEEE!!! aprendi a usar o 4Shared *_*)
Marrie levou a mão à boca para camuflar o bocejo, embora uma banda tivesse começado a tocar, e a música agradável enchesse o ar, ainda não lhe havia tido a oportunidade de flertar com nenhum rapaz. Marrie possuía a classe e a finesse de moça rica, mas sua atual condição e seu deleite pela liberdade, e pela própria libertinagem, talvez fossem perceptivos demais para os homens ao seu redor. Começava a crer que a cidade de Bennington nunca a entenderia, ou a convidaria a se sentir em casa. Ela não conseguia se habituar à rotina pacata e maçante do lugar, havia sim as aventureiras de plantão, mas a notícia corria tão rápido quanto em uma cidade pequena do Sul, e logo a devida moça estava tão mal falada, e com todo tipo de porta fechando ao seu redor, que não tardava a desaparecer de vez da cidade, se não de Vermont. Ao mesmo tempo Marrie tinha absoluta certeza que o mesmo conservadorismo que a sufocava, era o escudo necessário para proteger-se. Não a encontrariam ali, cercada de rotina e jovens discretos. Não a procurariam num local onde a única boate existente mais parecia um bar de um clube para magnatas. Quem acreditaria que Anne Marrie conseguiria viver com seu gênio e paixão controlados, quase omissos?
Anne voltou a circular seu olhar pelo local, os mesmos jovens discutiam futilidades e negócios no bar, as mesmas jovens fofocavam sobre eles em pequenas mesas, alguns já haviam até mesmo formado pequenos pares que dançavam ludicamente na pista de dança, passos leves e marcados, mãos comportadas e olhares furtivos típicos de jovens castas. Não pôde deixar de sorrir ao lembrar de que um dia fora exatamente assim. Não sabia se a faculdade tinha sido sua salvação ou perdição, mas não trocaria aqueles anos de luxúria desenfreada e jogos de poder por nada. Aquelas jovens podiam aproveitar sua vida perfeita e pura o quanto quisessem, mas um dia elas veriam bater em sua face o tempo que perderam por tolas morais. Então, aquelas jovens se encontrariam casadas com algum herdeiro ou promissor talento, e sua comodidade as prenderia a seus maridos, tolas moças que não conseguiriam vislumbrar vida sem o dinheiro de seus cônjuges, que nunca saberiam o quão prazeroso é ganhar a vida com o próprio corpo, e com uma paixão desenfreada e intensa por si mesma. Aquelas moças se subjugariam todos os dias ao perceber sua vida vazia, se aventurando em casos curtos e desprovidos da verdadeira intensidade, sempre regados a cuidados extremados para não perderem seus preciosos provedores. E aquelas jovens dariam às suas filhas seu próprio destino, e mais uma geração de mulheres pela metade seria trazida ao mundo.
A garganta seca de Anne já lhe implorava que deixasse seu orgulho de lado e pedisse uma bebida, sua presença solitária já atraía olhares maldosos e podia jurar que o assunto da mesa "feminina" mais próxima era a mulher desacompanhada e pobre, já que seus trajes mantinham a simplicidade que pode pertencer a uma Lady inglesa ou a uma caça-maridos. Riu sozinha, percebendo que atraía ainda mais olhares, embora seu bom senso dissesse que deveria dar a noite por encerrada, seu orgulho e ego apreciavam tanta atenção dispensada. Mordeu os lábios provocando, ciente de que estava percorrendo uma linha tênue entre o decoro exigido na cidade e seu lado subversivo que clamava por tirar-lhe da monotonia.
Foi quando cruzou seu olhar com o de um recém chegado, o moreno era vagamente familiar, trajava uma camisa azul-clara, gravata listrada, calça jeans, sapato marrom de bico quadrado, e uma jaqueta de couro preto. Em resumo, destoava amplamente do ambiente em eu se encontrava. Desviou os olhos do mesmo rapidamente ao ver que ele a encarava, fitou impacientemente a toalha de mesa creme e rezou para que ele não se aproximasse. Seus ouvidos se aguçaram ao perceber os risinhos que eram soltos, aparentemente davam àquele ser o título de seu acompanhante. Como se atreviam? Viera ali para conseguir um homem de charme e bem provido, e não qualquer um. Queria uma diversão de alto nível, não investira 50 preciosos dólares para sair com alguém que te cantaria em um McDonald’s.
A loira logo percebeu, para sua infelicidade, que o rapaz estava mesmo disposto a falar com ela. Ergueu os olhos desde os sapatos marrons até seus olhos castanho-claros, e então fitou seu rosto com mais atenção, estava séria e seus olhos faiscavam com tamanha insolência. Os comentários empesteavam a sala, o homem se prostrara tal como um poste ao seu lado, enquanto conversava com um garçom. Com razão o homem encarava o pobre coitado com certa piedade e acabou por atendê-lo. Durante todos os infinitos segundos que o garçom levou para buscar-lhe os drinks o “garoto” mantivera-se estático ao seu lado. As mãos da jovem apertaram com força a pequena bolsa, e não fosse sua sede devastadora ela já teria partido dali ofendida.
Finalmente, o recém chegado tomara coragem de sentar-se à sua frente. Seu rosto era de clara apreensão, ela poderia jurar que ele estava suando de nervosismo. Nunca, jamais, aborde uma dama sem a convicção de que pode tê-la, do contrário, qualquer ínfima chance que tenha tido, foi jogada escada abaixo. O garçom depositou os dois Apple Martinis na frente de cada um com graciosidade, mas seu “acompanhante” apenas o tomou em uma única golada, como se fosse um copo de pinga ou apenas atestasse ser um bêbado profissional. Anne ainda o encarava desafiadoramente, embora sua mão direita tivesse se apossado da bebida e levado-a à sua boca. O contato da bebida refrescante com seus lábios fez seu recente mal-humor aplacar-se razoavelmente. Em silêncio, contava até cinqüenta para resistir àqueles minutos de tortura que se seguiriam, pelo único benefício de um drink.
- Você não tem nada com pinga ou com tequila?
A pergunta fez com que ela depositasse o copo sobre a mesa e o encarasse um tanto furiosa, ele realmente queria fazê-la passar vergonha, era essa a única explicação. Um Apple Martini não valia tanto embaraço. Perceba, Anne conhecia os valores de uma tequila, e sem dúvida adoraria tomar uma dessas àquela noite, já que teria que suportar um provável maluco. O diálogo que se seguira é melhor nem ser lembrado. Anne tinha um pingo de esperança de que o garçom percebesse a situação e a livrasse daquele ser o mais rápido possível, aparentemente, entretanto, o fato dele ter desembolsado 50 dólares o tornara imune a retaliações por sua eprsonalidade. Como ela sentia falta de Nova York...
- Esta tarde eu sonhei com você.
A sobrancelha de Marrie arqueou-se levemente, seus olhos se abriram um pouco enquanto ela encarava seu interlocutor, aquela “cantada” não era digna de si. Pegou seu copo e esquecendo suas boas maneiras virou-o de uma vez. Ele estava certo, seria necessário bem mais do que aquela dose de álcool para suportar a situação. Com um aceno de mão ela fez o já conhecido garçom aproximar-se, hesitou um pouco no pedido que faria, mas quando escutou a palavra “obsceno” mandou a etiqueta às favas e requisitou uma dose tripla, se possível quádrupla de tequila pura.
- As íris dos seus olhos eram vermelhas e você me salvava de um bando de monstros que queriam meus ossos pra um transplante numa mulher que parecia ter sido vítima de um Braquium Remendo por parte do Gilderoy Lockhart.
- Traz a garrafa!- ela gritou para o garçom em sinal de desespero.
O risinho dele foi apenas ignorado. Aquele maluco estava fazendo-a perder tempo com sonhos malucos, dignos de um psicopata, para infelicidade dele, aquilo não a faria temer por nada, apenas injuriar sua própria sorte. Inacreditavelmente o garçom atendera seu pedido, trouxera em um pequeno prato duas metades de um limão e um saleiro, assim como um copo de umas 200ml e a garrafa inteira de Tequila. Discretamente ele lhe sussurrara ao ouvido.
- Pode deixar, está tudo na conta dele.
Anne deu um pequeno sorriso de satisfação, uma garrafa de tequila não era nada barata. Ignorando temporariamente o maluco à sua frente, ela se dignou com esmero a servir-se da tequila, enchendo o copo, passando o sumo do limão por sua beirada, e por fim munindo as costas de sua mão esquerda de sal. Virou em um único gole a bebida ardente, chupando o sal logo em seguida com verdadeira satisfação. Rapidamente pôde sentir seu organismo inteiro esquentar, sua pele arrepiara e ela sentira seu humor melhorar o suficiente para ofertar um sorriso discreto ao seu “colega” de mesa, cujos olhos estavam cravados na mesa.
- Escute, fique longe de Sebastian Stratton, ok? Ele tem más intenções com você. É tudo que posso dizer. Eu sei. Só acredite que eu sei.
Cinco segundos. Um segundo para escutar. Um segundo para entender. Um segundo para confirmar. Um segundo para repetir as palavras dele. Um último segundo para oferecer uma reação. Então ela riu. Anne soltara uma gostosa gargalhada que fizera muitos rostos voltarem-se a ela. Parecia uma crise nervosa. A loira mal conseguia respirar de tanto que ria. Como aquele ser ousava difamar o homem mais abastado da cidade? Como ele sequer intuía que Sebastian Stratton tinha más intenções com ela, ou intenções de qualquer tipo? Aquilo era uma pegadinha? Será que alguém resolvera brincar com ela? Arthur. Aquele filho-da-mãe iria se ver com ela no dia seguinte, mas pelo menos por hoje ele pagaria por sua diversão.
- Sebastian... Stratton... Intenções... Comigo...- ela tentava articular uma frase completa, mas não conseguia, seus risos já incomodavam claramente outras pessoas, tentou mais uma vez se recompor daquela situação ridícula- Que tipo de... Intenções? Ele está procurando outra noiva, porque estou solteira.
Mais uma leva de risadas enquanto ela tentava se servir de tequila, se não fosse o mínimo de bom senso que ainda tinha, provavelmente teria virado a garrafa na boca sem cerimônia.
- Posso saber ao menos quem é meu... Ahn... Herói?
Anne se presenteou com mais uma dose carregada de tequila, soltava sorrisos e gargalhadas ao seu interlocutor. O efeito álcool funcionava bem como sempre, embora conseguisse manter uma visão clara do eu acontecia, e utilizar as palavras com certa propriedade, seu humor estava se tornando claramente mais leve, assim como sua súbita percepção da situação calamitosa que se encontrava. Não, não era o fato de ter um maluco à sua frente, mas de que desde que se mudara para Bennington não pudera aproveitar-se de sua volúpia o tanto que gostaria. Quem sabe o senhor à sua frente, apesar de maluco, pudesse servir de válvula de escape e permitir que fosse si mesma novamente. Os olhos de Marrie serpentearam pelos olhos castanhos claros, até a boca vermelha e jovem do rapaz, que havia de ser estrangeiro, pelo sotaque que carregava.
- Meu nome é Anne, Anne Marrie, caso seu sonho não tenha lhe elucidado tal fato.- a mulher mordeu levemente os lábios enquanto dedilhava suavemente o copo de tequila em sua mão, a essa altura já novamente cheio- Me diga, há quanto tempo não tem uma mulher em sua cama?
Talvez a pergunta fosse muita direta, mas depois da forma que fora abordada, nãos e preocupava em abusar da situação, muito menos em constrangê-lo. A moça tomou uma nova dose da bebida e então lambeu sensualmente os lábios, enxugando cada gota de álcool. Encarava-o atentamente com um sorriso escancarado no rosto. A noite começara como uma piada, e provavelmente, se não tivesse servido de tequila, acabaria com ela indo embora deixando-o a ver navios. O rapaz tinha seus detalhes que lhe davam charme, a aparência de pequeno anjo, caso ignorasse as roupas reprováveis, cabelos levemente cacheados e certa timidez. Ele jamais poderia pagar seu preço, mas para uma alma como a de Marrie, o prazer poderia ser de graça, ao menos por uma noite, apenas pela pura necessidade de prazer.
Behnam Davor
Origem : Bosnia Herzegovina Ocupação/função : bancário (analista de negócios)
Assunto: Re: Les Papilles Seg Mar 22, 2010 4:59 pm
Por aquela Behnam não esperava. Não sabia se era sorte ou azar ela estar esvaziando uma garrafa de tequila e, por uma dessas mágicas do álcool, passar a vê-lo como o reprodutor da vez naquela noite. Ele achava que devia ser bastante ativa a vida sexual de uma mulher daquelas, podendo ter qualquer um que quisesse com um estalar de dedos. Não sabia direito como a coisa funcionava, pois ele era virgem ainda e conservava a noção adquirida de uma família ortodoxa de "sexo por amor" - pelo menos sexo por prazer... no caso dele, era ato de caridade.
Dizem que o ingresso de Groucho Marx em um determinado clube de escol fora vetado por ele ser judeu; quando os amigos vieram consolá-lo, com toda a inigualável presença de espírito grouchiana ele replicou animadamente: "Nunca que eu ia querer entrar pra um clube que aceitasse um cara como eu!" Este pensamento ocorreu a Behnam quando Anne começou a lançar-lhe olhares inequivocamente lascivos.
Era para ele ficar muito contente, mas depois de certa idade a virgindade masculina torna-se um círculo vicioso: quanto mais você é virgem, mais tem medo de revelar o próprio amadorismo, principalmente com uma mulheraça experimentada que vem dar em cima de você. E esse orgulho mantém a virgindade, que é a própria razão da inexperiência que se deseja debelar. Ele achava que acabaria tendo de recorrer às corpulentas senhoras da Gail's Brownstone, que ouvia colegas chamarem "as putas xexelentas", as quais trocam "serviço" por marmita e são feias demais para inibir mesmo o mais tímido nosferatu humano que fosse atrás delas em desespero de causa.
Behnam se considerava um desses nosferatus humanos... Só não as procurara antes por saber que o desespero de causa começa a acontecer depois da primeira atividade sexual. Aí o desejo de repetir a experiência poderia levá-lo a viciar em putas xexelentas... e ele tinha seu orgulho... e seu apego às já parcas economias.
A segunda e melhor opção era encontrar uma doce e tímida jovem que fosse tão virgem quanto ele e que, portanto, não teria parâmetro para comparações embaraçosas. Por isso Rasputin dizia que o cúmulo da soberba é a castidade. O medieval machismo eslavo de Behnam confirmava a tese do russo subversivo.
Após revelar seu nome afagando o copo e mordiscando os próprios lábios, Anne disse uma coisa que confirmava esses gestos sensuais como promessa do que estava disposta a fazer com Behnam, para isso bastando ele deixar de ser covarde - e orgulhoso:
- Me diga, há quanto tempo não tem uma mulher em sua cama?
Essa era uma pergunta que ele se recusava a responder. E como não gostava de mentir e se colocasse, ou parte estratégica dele, no lugar do copo de tequila acariciado de forma sugestiva pela convidativa mão de Anne, ele pediu licença para ir ao banheiro, rapidamente puxando o máximo que podia o extremo inferior da braguilha para folgar o aperto que o tomara.
No banheiro jogou-se água no rosto tentando figurar mentalmente a fórmula anafrodisíaca à prova de falhas de Austin Powers: "Margaret Thatcher naked on a cold day!" Estava estonteado. Uma primeira parte dele o condenava como sendo o dono do orgulho mais perdedor na história do planeta, uma segunda parte se envergonhava de ter que tocar num assunto que para ele, da rural e islâmica Tomislavgrad, era mais tabu que para os provincianos naturais de Vermont. Quase cinqüenta por cento da população bosniana é muçulmana e o resto é adepta do catolicismo ortodoxo de Bizâncio, aquele cuja liturgia é toda em aramaico (rito maronita). Noutras palavras, ele estava mais encouraçado que se paramentado com cinto de castidade. A terceira parte dele ainda nutria preocupações em relação a Anne, pois um instinto premonitório avassalador lhe dizia que ela se encontrava em perigo mortal, ou pior que isso. Mas como iria convencê-la? argumentando "acredite em mim, eu tenho o dom da profecia"?
Acabou enfiando a cabeça toda na pia bem limpa do elegante banheiro, pia essa que provavelmente ele havia inaugurado, e deixou o jato da torneira lamber seus cabelos até suas faces em brasa esfriarem e ele ficar com a aparência de um pinto molhado. Quem sabe agora, mais ridículo, ela pararia de o ficar tentando, pois embora estivesse decidido a resistir, os efeitos da tentação eram tão publicamente constrangedores quanto desconfortáveis, especialmente na hora de andar.
Então ele se permitiu inventar um discurso tanto para mitigar a sanha sedutora dela — que fazia seu coração fundir no peito e o estômago ir parar nos pés (sem contar os efeitos mais visíveis) — quanto para convencê-la a ficar longe de Stratton. Voltou até a mesa resoluto, os cabelos pingando, ignorando estoicamente os olhares desdenhosos daquele bando de aristocratas invejosos! Incontinenti, sentou e pôs-se a falar bravo, não porque estivesse assim mas para "bancar o macho" - ele já estava fugindo de uma noitada com a mulher mais bonita ali, e se por um lado uma das razões era machismo contra a dada leoa, essa mesma fuga também maculava a "honra" machista. Torturante dilema para um cara que recebeu formação religiosa repressora.
- Olha só, eu não queria ter que fazer isso pelo jeito mais duro, digo, mais difícil. Bom, no inglês a palavra quer dizer a mesma coisa — ele pensava em croata e traduzia depois, o que tornava sua fala arrevesada algumas vezes, especialmente quando tentava articular-se rápido e oprimido por uma dignidade ultrajada, como naquele momento. — Stratton é um maníaco, um psicopata sexual, que vai comer você não desse jeito gostosinho que você está pensando não! Ele assa a periquita numa churrasqueira e come depois, come, entendeu, canibalmente — fazia a mesa pular com murros bravios — que eu tenho que fazer a distinção porque no meu idioma não se usa pra sexo a mesma linguagem que se usa pra gastronomia, não somos levianos assim. Ou você acha que eu sou o quê? Uma salsicha? — misturava as coisas, tanto por causa do efeito do álcool quanto pela perturbação natural que Anne lhe causava aos hormônios, ao cérebro, a tudo, encaixando sermão em função do seu moralismo ofendido. — Eu aqui tentando te ajudar e você vindo me perguntar há quanto tempo eu não faço amor??!!! VOCÊ ESTÁ FORA DE SI!!!!?????? — ele urrava feito um animal enlouquecido.
Agia como se tivesse sido insultado, e estava, mas não pela pergunta em si, e sim pelo que ela o obrigava a responder: que ele era um celibatário, condição que aprendera nos Estados Unidos ser pejorativa.
- Sabe aquela história das três vereadoras desaparecidas e do procurador de justiça que foi parar no hospital com anemia profunda? Obra e graça do seu Stratton abominável, que usou os corpos daqueles excomungados num culto escabroso a Baphomet, diante do qual ele fica dançando só de sunga, enquanto espisoteia as vítimas dos sacrifícios, com cujo sangue ele alimenta seu bode maldito que hoje já está do tamanho desta mesa, super-alimentado.
Talvez no vilarejo supersticioso de onde vinha Behnam, o discurso teria assustado alguns campônios e um par de carolas dispostas a acreditar em qualquer absurdo que pudessem transformar em fofoca cabeluda, mas perturbado pelas emanações ferormônicas de Anne ele já não raciocinava muito bem. A maneira encolerizada de falar com a moça só provava, para o observador atento, o quanto ele queria se engalfinhar com ela ali mesmo, virando manchete para o maior escândalo do ano. Mas instinto é uma coisa, tabu é outra. A história de um Stratton discípulo de Baphomet não era de todo falsa: o sumiço das vereadoras e o estado de saúde periclitante do procurador hospitalizado tinham que ver com o diretor da Spectron Pharmaceutical Laboratories, mas Behnam não sabia disso; não percebia que estava sendo canal de revelações nada fictícias, apesar do objetivo e circunstâncias fantasiosas que emprestava à cena.
A despeito de toda a postura encapelada e do moralizador dedo em riste, ele ardia em desejo de que Anne o enfiasse na bolsa e o levasse para casa ou coisa parecida.
- E tome como presságio! Se um dia Stratton agir estranho com você, entenda como aviso de que deve deixar a empresa imediatamente, pois morar debaixo da ponte é melhor que perder a alma!
Nem Behnam sabia o valor da advertência que proclamava feito o arcanjo das trombetas apocalípticas, desapercebido de seu dom oracular.
Anne Marrie Wills
Origem : Nova York Ocupação/função : Programadora
Assunto: Re: Les Papilles Qua Mar 24, 2010 8:43 am
Anne notara a situação constrangedora em que Brehnan havia se colocado. Enquanto esperava-o voltar do banheiro cogitara pegar a garrafa de tequila e seguir para casa, deixando-o a ver navios. De fato a idéia lhe passou mais de uma vez pela cabeça, mas o calor da tequila havia lhe dado mais um motivo para ficar. A essa altura a garrafa já se encontrava pela metade e podia-se notar algumas gotas de suor sobre a pele da mulher. Infelizmente não havia como libertar-se daquela blusa, não ali. Assim que Brehnan voltara com os cabelos molhados, a água escorrendo por sua face, um instinto quase animal decidira por ela. Ele não escaparia dela, não importava como ela teria que atuar.
- Olha só, eu não queria ter que fazer isso pelo jeito mais duro, digo, mais difícil. Bom, no inglês a palavra quer dizer a mesma coisa.
Anne deixou o sorriso ainda mais lascivo, sua mente não prestava atenção nas palavras dele, mas nos lábios macios que as emitiam. Mordeu seu lábio inferior por um minuto quando notou uma gota de água caminhar suavemente pelos lábios dele, descendo pelo seu queixo, e deslizando rapidamente pelo seu pescoço. Internamente Anne sentiu aquele calor tão familiar, o desejo lhe devorar seus sentidos. Ela sabia o que queria, e não se negava nada a ela.
- Stratton é um maníaco, um psicopata sexual, que vai comer você não desse jeito gostosinho que você está pensando não! Ele assa a periquita numa churrasqueira e come depois, come, entendeu, canibalmente, que eu tenho que fazer a distinção porque no meu idioma não se usa pra sexo a mesma linguagem que se usa pra gastronomia, não somos levianos assim. Ou você acha que eu sou o quê? Uma salsicha?
Marrie soltou uma risada sarcástica. Naquele exato momento ele era apenas uma presa, uma forma de escapar dos grilhões moralistas daquela cidade e reviver o prazer de se ruma alma livre. Aquele menino não sabia como era isso, oh não, estava na cara que embora seus desejos falassem um a coisa, ele tentava duramente controlar-se e ater-se àquelas maluquices sem sentido. Se ele queria brincar de herói, tudo bem, mas mocinha indefesa era uma coisa que ela não era, e jamais bancaria o papel, pelo menos não em particular.
- Eu aqui tentando te ajudar e você vindo me perguntar há quanto tempo eu não faço amor??!!! VOCÊ ESTÁ FORA DE SI!!!!??????
O papo já a entediava, mas ela agüentaria. Por baixo daquela face moral e determinada, daquela insanidade sem explicação, haveria de existir um homem, sempre havia um homem. Marrie conseguia imaginar como seria ensiná-lo a ser um homem, como seria despi-lo daquela máscara e mostrar o que todos os seres humanos precisavam e amavam, o prazer. Ele logo saberia Seus dedos começaram a passear indevidamente pelo próprio decote, precisavam sai dali o quanto antes, dentro daquela boate ela acabaria por revelar sua identidade ousada e pouco convencional. De fato já se revelara demais para quem deveria se esconder nas sombras. Mas como... Como fazê-lo acompanhá-la sem perguntas, ela tinha que atuar. Era a hora de dar o que ele queria, para receber o que ela precisava.
A face de Anne passou de lasciva para assustada quando ele mencionou fatos reais. Ela olhou par aos lados como se estivesse aterrorizada, engolira sem eco. Pobre garoto, cairia como uma mosca em sua teia. Bem, ele deveria ter previsto o que viria a seguir, se ele a conhecesse. Infelizmente homem nenhuma conhecia, e homem nenhum hesitaria a cair em seus braços. Bem, talvez Stratton, todo aquele papo de Brehnan acabara por elevar seus pensamentos ao homem mais poderoso da cidade. Ele parecia capaz de resistir a ela, talvez ela pudesse tirar a prova. Mas era Sebastian Stratton, brincar com homens poderosos era deveras arriscado, ainda mais como alguém em sua posição. Se o destino lhe desse esse prazer... Sentiu o calor novamente, como aquele garoto poderia saber que tudo o que falara e fizera só permitira que ela tivesse desejos de conhecer aquele homem um pouco mais. Como reagiria se soubesse que toda sua insanidade causara o efeito contrário. Foco. Era preciso concentrar-se para não perder a atuação de vista. Sebastian seria assunto para outras noites, àquela noite era de Brehnan.
A loira então ergueu-se um tanto cautelosa da cadeira, colocou-se ao lado do homem, abaixando-se para falar-lhe ao ouvido. Obviamente o movimento faria seus seios saltarem pelo decote, mas ela parecia tão preocupada que dificilmente notaria a “falta”. Com a mão direita ela fez uma leve carícia em sua bochecha enquanto sua voz rouca e macia aliciava o pobre garoto.
- Talvez, talvez tenhas razão... Mas caso seja verdade o que me dizes, discuti-lo em um local tão populoso é de um perigo absurdo. Por favor, feche a conta e me encontre em meu carro, assim poderemos ir a algum lugar para conversarmos melhor. Se Stratton é tão poderoso e perigoso, não se deve elevar a voz ao falar de seus feitos vergonhosos. Esperarei por ti em 10 minutos.
Ergueu-se após o breve discurso. Tinha certeza que o peixe morderia a isca com facilidade. Deixou sua mão enlaçar a garrafa de tequila, afinal o pobre Brehnan já pagaria por ela de qualquer forma. Assim, com a garrafa em uma mão e sua bolsa em outra, saiu caminhando, comunicou ao garçom para levar a conta até o “inconveniente” dando-lhe uma piscadela, e então encarou o ar frio da madrugada. Assim que colocara os pés na rua sentiu uma onda de liberdade, a qual não sentia há anos. De braços aberta ela girou o corpo como se fosse uma criança, mas apenas lhe agradava o prazer da conquista. E logo lhe satisfaria o poder da luxúria. Seus olhos emanavam uma perigosa luz. Caminhou a passos rápidos até o próprio carro, ajeitou-se no banco do motorista, lembrando de subir a saia alguns dedos, afim de mostrar parte de suas coxas. Tragou nova dose da bebida, logo tampando-lhe e colocando-a no porta luvas. Com as chaves na ignição e um sorriso bem discreto, esperou pela sua presa. Daria apenas dez minutos antes de dar a partida em direção ao seu apartamento, em fato, bastaria vê-lo aproximar-se para dar a partida. Sabia que ele a seguiria. Não era sua primeira noite como caçadora, e definitivamente não seria a última. Pobre Brehnan, tão previsível...
Behnam Davor
Origem : Bosnia Herzegovina Ocupação/função : bancário (analista de negócios)
Assunto: Re: Les Papilles Sex Mar 26, 2010 12:28 pm
Quando Anne alertou Behnam do perigo que corriam ao conversarem sobre tão sérias acusações contra o homem mais idolatrado e poderoso da cidade, o croata não custou para acreditar na sinceridade dela. Ficou envergonhado de sua indiscrição e concordou que precisavam sair de lá e ir para um lugar mais privativo a fim de discutirem o delicado assunto.
Obviamente ele estava se enganando, se auto-iludindo: mesmo quando ela sentou do lado dele em movimentos calculados para lhe fazer transbordar um pouco mais do decote seu precioso conteúdo semi-guarnecido e falou-lhe aos ouvidos fazendo uma leve carícia em sua bochecha, secando assim, pelas emanações evaporantes do desejo, as gotas que escorriam pelo rosto até então molhado de Behnam, graças à água com que quisera esfriar os impulsos instintuais que Anne parecia ter o dom de fazer prevalecerem nos homens.
Ele ficou paralisado com a aproximação dela, temeroso de que se permitisse a si mesmo o menor movimento, um ímpeto animal lhe arrebataria os braços contra a vontade racional e a apertaria contra si até Anne colar em suas costas. Nem respirava. "Margaret Thatcher naked on a cold day"...
Então, como se os anjos fossem em seu socorro arrancando-o da tentação, ele, estático feito um estafermo, sentiu que o corpo quente e provocante dela se distanciava e viu-se de cara com a broxante conta trazida pelo garçom.
Todo seu ardor fumegante que quase abria bolhas na pele foi congelado, como se esmagado pelo iceberg que afundou o Titanic:
- QUÊ??? O QUE VOCÊS PÕEM NAS BEBIDAS AQUI?!! OURO?!
Mas ele precisava pagar logo. Primeiro que aquele lugar não parecia um que aceitaria, com a mesma classe que a decoração, a insolência dos pechincheiros pé-de-chinelo. Segundo que Anne já havia saído porta afora e não podia perdê-la de vista. Não era uma possibilidade tão remota que ela acabasse decidindo ignorar as advertências dele, as quais qualquer outro livre dos efeitos do álcool poderia usar legitimamente como pretexto para interná-lo no Hanwell Insane Asylum. Aproveitou a repentina sobriedade trazida pelo choque do desembolso que acabara de deixar sua carteira vazia para o resto do mês, e lépido como um serelepe encarapitou-se em sua lambreta. Ato-contínuo, Anne deu a largada cantando os pneus, como se estivesse apostando uma corrida.
Ela passava por esquinas como se fosse seguir reto e no último segundo virava bruscamente, fazendo Behnam quase derrapar mais de uma vez. Verdade que Anne estava alcoolizada, mas nem disso precisava para sentir prazer naquele jogo em que a caçadora se fazia de caçada, mal imaginando o pobre coelhinho atrás dela que não seguia uma donzela em apuros necessitada do auxílio de um herói, e sim uma raposa faminta.
Anne sentia-se livre de novo, até mesmo desafiar os limites de velocidade nas ruas de pouco tráfego daquela cidade fantasma - comparado a Nova Iorque - tinha o condão de diverti-la muito mais do que uma montanha-russa. Mas Behnam não cogitava dessas coisas. Para ele, a moça era simples vítima da embriaguez e brincava com a sorte. Não pensava que ela estava no controle da situação - no controle dele. Cria que Anne o levava para um lugar em que pudessem discutir os perigos que a rondavam; queria crer nisso para negar a esperança mais "baixa" quanto ao tipo de resultado que adviria daquele jogo de gato e rato - sendo ele, já visto, o rato moralista prestes a ter seus sublimes princípios "profanados" pela selvageria de uma leoa no cio.
Sua heróica motoca, contrariando todas as previsões do bom senso, mantinha-se impávido colosso e seu futuro espelhava essa grandeza não fosse o impacto surpreendente contra alguma coisa literalmente invisível no meio da rua, a não ser que o precário veículo tivesse a capacidade de capotar numa saliência do asfalto.
A moto ficou e Behnam voou pelo menos dois metros adiante. Sua aterrissagem coincidiu com a imediata perda dos sentidos.
Olga Prokosch Ancillae
Origem : Bulgária
Assunto: Re: Les Papilles Sex Mar 26, 2010 6:24 pm
- Será que é tão difícil você entender o que eu quero? - ela gritava para o pai, fazendeiro; ela, uma filha, só uma filha, ajudante da mãe, cozinheira, lustradora de botas e enceradora de chão.
Mas é assim que é na Bulgária. É assim que era. Era? Quem é rico lá é porque tem terras. Quem tem terras, tem as unhas sujas de terra. Ordenha vacas. Lá o "detentor do grande capital" é, também, operário ele mesmo, não pode se dar ao luxo de ter empregados em número suficiente para só ficar dando ordens — e mesmo que os tivesse, é difícil confiar, porque lá as pessoas aprendem a ser corruptas desde muito cedo, é o único jeito de "subir" na vida nos países da Europa Oriental. Pergunte para qualquer um deles. Não há dinheiro honesto lá.
Vergonha do meu sotaque, vergonha das minhas roupas, vergonha destes calos e das lacerações nas mãos e nos joelhos.
- Eu não nasci para isso, eu tenho uma voz de diva, eu sei cantar melhor que a Maria Marchetti Fantozzi, você já me ouviu cantando, por acaso?
- Já, e quando isso aconteceu, coincidiu com o meu caneco de cerveja trincando. Pega o esfregão... e esfrega! Enquanto não concluir a sua cota de serviço do dia, você não dorme, não pelo menos na sua cama, muito confortável por sinal. Você reclama de barriga cheia! E por falar nisso, não janta enquanto não terminar. Estou por conta dos seus faniquitos de menina mimada! — trancou a filha no banheiro. Só não bateu a porta porque ele tinha mais zelo por aquelas portas altas de cedro trabalhado do casarão mais imponente de Petrich, do que pela filha.
Ela estava tão infeliz. Tão infeliz. Por que é que tinha que ter saído diferente das irmãs? Elas estavam todas satisfeitas com a perspectiva de se casar com fazendeiros ainda mais ricos, ter filhos e continuar lustrando botas. Por que aquela eterna insatisfação em Olga?
Nada a ver essa insatisfação, oras: ela não tinha, realmente, um talento maior para se destacar, só o desejo — o anseio. E para que isso? Para que anseio sem a capacidade correspondente?
Capacidade é algo que se adquire, que se aprende? Ela precisava estar fazendo aulas de canto em um conservatório musical em Varna? Precisava? Então por que ela não prestava para ganhar um dinheiro dela e financiar seu próprio futuro? Mas quando que teria tempo para si mesma com tantas latrinas para lavar? Estaria sendo egoísta?
- É errado ser egoísta? - disse uma voz de mulher madura vinda de algum ponto do enorme banheiro.
Olga devia estar tão infeliz que ouvia coisas. Depressão faz isso? Ergueu na direção da voz o rosto lavado com frustração e, com dificuldade, lobrigou através das lágrimas que, pela janela do banheiro, entrava uma neblina esverdeada.
- Seu pai está sendo egoísta, por que você não pode ser? Para que esse conflito, minha querida? Porque ele conseguiu convencê-la que egoísmo é errado, justamente para ele continuar lucrando com sua vontade de ser boa. Só os opressores lucram com a sua bondade. Os parasitas que precisam dela são, também, a seu modo, opressores.
Essa voz lê pensamentos. E então Olga começou a ficar com medo.
- Quem é você?
Lentamente a mocinha ia se levantando para executar a vã tentativa de forçar a maçaneta da porta.
- Você é o diabo?
- Eu Sou o que Sou...
E uma mulher muito bonita se materializou da neblina — assemelhava-se a uma fada. Era de uma beleza irreal. Parecia saída de uma fábula. Algum tempo depois Olga viria a descobrir que, inclusive, ela era conhecida como Titánia em seu meio. Mesmo assim, a garota estava aterrorizada, haja vista a religião ter-lhe ensinado que um anjo de Deus é que não poderia ser, pois ela, Olga, era má, era egoísta, e por isso merecia é a companhia do diabo, não dos anjos do Senhor. Tentou dar um grito de horror, mas a voz não saiu.
- Eu não estou aqui para machucar você. Você não precisa disso, porque ninguém melhor do que você mesma para se fazer sofrer. Eu quero lhe dar o que você sempre quis. Liberdade de escolha. Vem comigo?
Não foi dessa vez que Olga disse sim. E não foi dessa vez que sua família acreditou que uma fada aparecia para ela... O que fizeram foi chamar o padre para benzer e expulsar demônios.
A "fada" continuava aparecendo, e um dia a garota descobriu que essa "fada" só entrava na casa dos Prokosch porque certa feita Olga a tinha convidado a entrar. Contava oito anos de idade; seu primo adolescente estava lendo a peça de Shakespeare para ela. Concluída a leitura, encantada — e cheia de anseio — ela foi até o bosque perto de casa e gritou "Vai lá em casa, Titánia, vai lá me visitar!" Depois disso, nunca mais a Titánia tirou os pés daquela casa.
- Então vamos fazer assim. Ou você vem comigo, ou eu aniquilo toda a sua família.
- Que liberdade de escolha é essa que você quer me dar?
- A mesma que você tem agora: nenhuma. Mas, pelo menos, uma de nós duas será beneficiada por sua insistência em não existir completamente.
- Você é outra egoísta!
- É claro.
- O que você quer comigo?
- Companhia.
Olga tinha sorte. Porque naquelas vastidões ermas de Blagoevgrad, havia, além de Titánia, só mais dois vampiros: Borislav Doritsch e Marko Prandzheva (uma vez que o Sabá se expõe demais, possui membros de menos, é claro). E estes outros dois nem tinham interesse em companhia, nem eram tão razoáveis quanto Titánia — os dois, também Tzimisce como ela. Ainda como a maioria dos Tzimisces, Titánia era desfilhada, e só depois de muito velha concluiu que deveria deixar uma Cria no mundo: porque ela ingressaria no sono dos Matusaléns, e só Inconnu para resistir o chamado do torpor-dos-séculos quanto isso acontece. O que tinha de melhor para ela naquelas terras era Olga — porque Olga aspirava algo mais. Todos os outros eram conformistas. Olga sofria, como ela. Olga poderia entendê-la.
Só que a moça não sabia realmente o que aquela sua Titánia era. Quando soube, já havia sido Transformada.
- Por que eu deveria lhe ter dito que sou uma vampira? Vampiros são demônios para o povo desta região.
- E é nisso que você me transformou!!! - gritava Olga, chorona como sempre.
- Faz mesmo diferença para o que você era antes?
Olga tinha sorte. Porque ela viu aí a desculpa que precisava para sabotar a sua Senhora, juntando-se ao Sabá. Titánia abandonara a Seita há muito tempo; embora conservasse a mesma filosofia, não concordava com a forma temerária de colocá-la em prática do Sabá. Foi lá se isolar nos cantões esquecidos por Deus de Blagoevgrad. Antes de Olga partir "sem" seu conhecimento, para se juntar a Marko Prandzheva, Titánia avisou: "Você vai sofrer." Claro, Titánia possuía Auspícios, ela sabia o que sua Criança estava prestes a fazer. Marko Prandzheva! Toda a sorte jogada no lixo. Mas, na verdade, não era esse o sofrimento que a sua Senhora tinha previsto.
Olga, contudo, via a auto-causação voluntária de sofrimento como um alívio - em vida, ela ficava arrancando pêlos da virilha com uma pinça, para anular a dor de cabeça provocada pela creolina; em morte, ela procurava outras formas mais potentes de se causar dor para anular as dores impingidas por pessoas ou situações alheias à sua vontade: era uma maneira de sentir que se está no controle, sou eu quem me causa a minha dor. Eu sou a fonte da minha própria dor. Eu. Só eu mesma.
Por isso, ela não se deixou fascinar por Marko Prandzheva, que era fascinante. Por isso, depois, já na sede do Sabá, na Transilvânia, não se deixou fascinar por Marek Jaroszýnski, mantendo sua independência emocional travessa, que por isso ele preferia se engajar nas missões na companhia dela do que se fazer acompanhar por quaisquer outros Anciões mais poderosos - e menos divertidos. Por isso, sobretudo, não se deixou fascinar por Stanislav Morávec — não? A piada do século!
Era difícil. Os Auspícios dele sabiam. Os Auspícios dela sabiam que ele sabia.
Visto Olga ser Cria de uma vampira muito velha, seu Sangue era de Geração baixa, então não demorou para que estivesse masterizando todas as Disciplinas do Clã, principalmente os Auspícios. Nenhum Tzimisce, mesmo os Anciões, podiam penetrá-la. Exceto Morávec.
Certa vez, em uma festa do Sabá, ela foi até a sacada do Castelo Dracula, onde Morávec, para variar solitário, refletia sobre os próximos planos de destruição do mundo (Olga não entendia ainda para que isso, mas, para ela, valia a pena tanto quanto manter o mundo a salvo da destruição — niilismo total), e admitiu:
- Acho que se eu colocar em palavras, e confessar expressamente, vai ficar mais fácil para mim. Você sabe, eu sei, mas não pretendo deixar isto crescer dentro de mim.
- Por que não?
- Você sabe. Você sabe tudo.
- Se eu for condicionar a minha disposição de ouvir os outros ao que eu não sei, eu me livraria dos meus ouvidos.
- Assim como se livrou dos seus olhos?
- Por que não?
Esta indagação era, na verdade, uma retomada da primeira pergunta que ele lhe dirigira naquela conversa. O Voivode instava para que ela fosse direto ao assunto. Olga não estava lá para falar dele. E isto não era o mais confortável para ela.
- Ninguém dá o que não tem. Eu tenho. Você não. Eu não quero isso. E como não quero ter sem ser correspondida, uma hora vou fazer isso que eu tenho desaparecer. Você vai ver.
Ele apenas sorriu. E tornou a olhar a lua. Ela saiu dali chorando - principalmente de raiva de si mesma. Era tão bonita a história do Dracula apaixonado por Wilhelmina Harker... haha, o que Bram Stoker entendia de Tzimisces? Mas eu não sou uma Tzimisce? Então por que é tão difícil para mim?
Pelo menos Marek a recebia em sua intimidade, cruel e debochador como sempre, mas, para cada um, existe aquela outra pessoa que tem o diferencial. O diferencial varia. Olga percebeu qual era o diferencial que Morávec tinha aos seus olhos em uma outra reunião do Sabá:
- Você está sendo muito bonzinho com aquele povo da Wallachia, Morávec!!! - acusava o líder-mor do Sabá, é claro, um Lasombra.
Os Lasombras nunca haviam entendido, nem tinham condições de entender, por sua natureza, a hospitalidade dos Tzimisce. Mas naquele dia eles entenderam.
- Você quer ser mau, Vranchev?
- Isso aqui não é filme de Hollywood, Morávec.
- Pois você está fazendo parecer que sim. Quer machucar alguém? Então faça com que essa pessoa te ame.
Foi aí que os Lasombras entenderam o que é o sadismo dos Tzimisce. E foi aí que Olga teve que sair da sala, para chorar de novo. Mas para onde fugir? A onisciência de um Tzimisce permite que ele fuja? Não permite. A onisciência não permite a fuga. E as palavras de Morávec continuaram se cravando em seu coração morto como estacas, fazendo com que ela o sentisse como algo bem vivo e pulsante.
- Você só fere realmente, Vranchev, aquele que te ama.
Parecia tão simples, mas o "segredo" Tzimisce irrompeu naquela memorável reunião do Sabá como um rugido de genialidade inovadora que os Lasombras nunca teriam tido a capacidade de perceber por si mesmos, porque eles eram destrutivos demais para ser sádicos de verdade.
A assembléia de Lasombras estava tomada pelo assombro e pela reverência. Os Tzimisces também tinham seus motivos para sorrir para Morávec, porque ninguém do Clã conseguia aplicar tão bem a essência do princípio da hospitalidade Tzimisce quanto Morávec. Neste poder jazia outro segredo, que não lhes era dado conhecer, porque os Auspícios de Morávec neutralizavam, dizia-se, até os de Dracula. "O Senhor dele o ensinou bem", falava-se.
E por isso lá estava Olga, fazendo serviço de Lacaio, por Morávec. Ele não confiava na competência de mais ninguém - exceto a de Marek, mas este Lasombra vaidoso preferia que sua primeira incursão na cidade fosse no elegante Bloomsbury bistro, onde pretendia aterrorizar os circunstantes com a revelação Tenebrosa da verdade: a realidade vai muito mais além do que sua vã ciência pode provar. Quem já tinha visto as sombras se expandirem e encolherem ao comando de alguém, envolvendo todos numa bolha sufocante de trevas viscosas? O Sabá acabara de chegar à cidade e Jaroszýnski queria se divertir. Olga também... mas Morávec, mais centrado, desejava dar início a seus planos imediatamente. Era condescendente com a necessidade de diversão ad terrorem de Marek, mas achava que faltava à Ancillae muita coisa a aprender e por isso ela não podia se dar certos luxos enquanto não tivesse camelado muito...
Ela estivera observando do outro lado da rua, no aguardo do momento em que Anne Marrie Wills sairia do Les Papilles e pudesse ser seqüestrada, para em seguida levar a programadora da Spectron ao Voivode. O que Morávec queria com ela? Os Auspícios de Olga não podiam penetrar os pensamentos dele, dono de Auspícios de nível superior. Mas a Ancillae sabia que o progênito de Dracula não dava ponto sem nó.
Já estava devidamente alimentada para a missão da noite, até demais, por saber que os Justicares daquela cidade não eram para qualquer um. Distraída com esses pensamentos, olhava em torno com vagueza para ver se percebia a aura de algum vampiro; passantes iam e vinham, no embalo da inauguração daquela boate janota, mas nenhum vampiro. Stratton era muito "econômico" quanto a dar autorização de criar novos progênitos. Mas o Sabá tinha chegado e logo a história de Bennington iria mudar radicalmente. Os vampiros dominariam de verdade, como era seu direito natural: não daquele modo Ventrue — um desperdício — manipulando os cordames de marionetes desapercebidos na sociedade humana. Que graça tem dominar quando os outros não sabem que estão sendo dominados? Quem entende os Ventrue? Talvez os Malkavianos...
Não se surpreendeu quando viu Anne dando a largada em seu Ford como se fosse num carro de fórmula 1, ainda que surpresa com o fato: Olga estivera distraída e não pudera prever os passos da nova-iorquina e do traste que ela arrastava a tiracolo como "pedra no sapato" daquela missão; a distração e a falha dos Auspícios não eram por acaso. Sinal de que outro vampiro mais poderoso em Auspícios e contrário aos propósitos dela andava por perto, ou quebrando à distância o poder de vaticínio Tzimisce. Precisava agir rápido. Mas Rapidez não estava entre os poderes de Olga, e por mais que conseguisse alcançar a moto velha de Behnam, a fúria de Anne no acelerador batia mesmo a velocidade sobre-humana da vampira. Correr a cem quilômetros por hora é coisa que qualquer Cainita pode fazer com facilidade. Mais que isso é trabalho para quem possui Rapidez.
Portanto, ela precisava usar a cabeça: ao interromper o curso alucinado da moto de Behnam, chamando dos bueiros uma ratazana de plantão que se pusesse no caminho, provocaria um acidente que poderia, ou não, fazer Anne parar a fim de vir ao socorro do seu garoto de programa gratuito. Se viesse, missão cumprida. Tinha o que levar para a Mansão Laverock. Senão, ela não sairia perdendo de todo; o sangue do lanchinho que se derramava no asfalto das escoriações e pele esfolada cheirava como um dos bons. Por mais ela que não quisesse decepcionar Morávec, o próprio fato dos Auspícios dela terem sido prejudicados por uma força inimiga lhe recomendava que voltasse ao abrigo dos poderes do Voivode tão logo possível. Não iria arriscar continuando a perseguir Anne, não naquela noite. E Marek que se cuidasse.
Anne Marrie Wills
Origem : Nova York Ocupação/função : Programadora
Assunto: Re: Les Papilles Qui Abr 01, 2010 8:01 pm
O prazer de uma perseguição. Inebriante e provocante. Virar o carro em cada esquina no último instante, controlar o carro com a propriedade de um piloto, e a audácia de uma fugitiva. Cada esquina virada, cada troca de marcha, era como uma conquista. Naquele momento, enquanto Anne dividia sua atenção ente o volante e a garrafa de tequila, a doce raposa podia observar sua presa não se desgrudar da traseira do seu carro sequer um minuto.
Para Marrie não existia mais a pacata Bennington, mas a luxuriosa Nova York, com o pequeno detalhe de todos os sinais estarem abertos, e nenhum tráfego pelas avenidas. Visitar um mundo que a muito fora obrigada a largar para sobreviver. Mas viver... Viver de verdade, vivia ali, com um ingênuo herói em seu rastro. Pobre Behnam... Estava prestes a descobrir o lado real e apetitoso da vida, aquele a que se negara por tantos anos provavelmente. O anjo caído... Seria um belo apelido para ele.
Anne deu mais uma guinada no carro, estavam quase lá, mais algumas quadras e estariam em seu apartamento. Olhou-se no espelho mordendo os lábios e certificando o batom quase inteiro. Com um ajuste no retrovisor constatou descrente que o anjo caído não mais estava em eu encalço. Diminuiu a velocidade, esperando que a moto aparecesse em seu campo de visão. As marchas foram caindo vertiginosamente até que o carro parou. Anne olhou em seu celular atentamente, os segundos passavam e nada de sua presa aparecer.
Um minuto, dois, três... What a fuck! O volante recebeu um golpe seco de raiva. Estava tudo correndo bem, onde diabos aquele idiota havia se perdido? Os dedos tamborilavam contra o volante, restava-lhe uma escolha: Seguir até o apartamento, entornar os últimos quatro dedos da garrafa e capotar na cama. Nova olhada no relógio, passava há muito da meia noite, dormir agora após tanta bebida será condenar-se a perder um dia de trabalho, coisa que não poderia. Precisava ficar acordada. Acordada até o amanhecer, refletindo como teria sido sua noite. Como um babaca a fizera perder tempo e não lhe dera o que ela queria.
Oito minutos. Anne Marrie olhou para os lados, ruas vazias. Mais à frente seu apartamento, perdido em algum lugar atrás sua presa. Os dedos apertaram firmemente o volante, as unhas cortaram o material macio do mesmo. Dez minutos se passaram. Anne ligou o rádio, chiado. Então sintonizada, a nova música de Christina Aguilera. Ela aumentou o volume, as frases da diva POP ecoaram pelo silêncio da madrugada. Um sorriso demoníaco surgia nos lábios de Anne Marrie: Ela sempre conseguia o que queria!
Motor ligado, o acelerador pressionado até o talo. Fazendo os pneus cantarem ela soltou o freio de mão e em um cavalo de pau colocou o carro na direção contrária. Mais uma fritada de Pneus, em trinta segundos a quinta marcha já estava posta e a raposa estava de volta à caça. Com a mesma velocidade que viera ela voltava, ele deveria ter se perdido a alguns quarteirões. Refazendo o percurso a loira se deparou com a moto ainda ligada caída no asfalto. Imediatamente Anne fez o carro parar. Puxando o freio de mão, e deixando as chaves na ignição a loira procurava o antigo piloto da moto. Seguiu até a mesma e desligou a motoca, reparando que parecia mais antiga que seu Ford.
Havia algo denso no ar, e nenhum sinal de Behnam perto. Andando devagar e alerta ao menor ruído, embora o rádio continuasse a tocar inacreditavelmente alto, Anne começou a se afastar do carro, procurando por Behnam. Ele não podia estar muito longe, a não ser que tivesse ido procurar ajuda. Mas porque deixar a moto ligada e caída no mesmo lugar? A loira sentiu um arrepio na espinha e já desistia de procurar pelo anjinho desaparecido. Por mais que seu desejo de terminar o que começara fosse forte, seu senso de sobrevivência era ainda maior. A programadora deu meia volta em direção ao carro, a música que tocava na rádio agora era outra.
(Desculpem a demora e o post curto, mas queria deixar aberta a posibilidade da Olga ainda estar por lá!)
Olga Prokosch Ancillae
Origem : Bulgária
Assunto: Re: Les Papilles Dom Abr 04, 2010 8:30 pm
Recapitulando. Olga, por ser vampira, tinha uma velocidade sobre-humana. Verdade. Isso quer dizer que ela podia, no mínimo, competir pau a pau com uma chita. Mentira.
A velocidade máxima atingida por um humano é 45 km/h — isso aqueles corredores quenianos, como se vê nas Olimpíadas. QUALQUER VAMPIRO atinge pelo menos 100 km/h, mas existem aqueles que conseguem acompanhar o trem-bala que seja, e esses são os dotados de RAPIDEZ e que têm níveis altos de poder nesta Disciplina.
"Enfim"... Olga não era um desses vampiros.
Por isso ela precisou forjar um meio de fazer Anne Marrie Wills parar o carro ou desacelerar, para poder "levar pra casa" o filé mignon. Se bem que Morávec não iria reclamar que levassem-lhe uma caça de bom sangue como Behnam, garoto de hábitos saudáveis e portanto de sangue mais nutritivo: um tapa na cara de um vampiro do Sabá, que preconiza a licenciosidade ao nível máximo - até onde você conseguir, ou melhor, QUISER ir. Mas na hora de se alimentar, os bons cristãos são sempre as refeições mais saborosas.
Anne, porém, estava meio bêbada, e mais concentrada na diversão da "caçada": ao se fazer de caça ao puro donzelo, tanto mais empolgante se tornava para ela antecipar a reviravolta do jogo, quando atiraria na cama o relutante Sir Galahad (o Casto) e faria dele gato e sapato. Além disso, Anne dividia sua atenção com a garrafa de tequila, de modo que pouco espaço sobrava para ficar se certificando de que Behnam a acompanhava fielmente: nunca havia acontecido antes de seu encanto escravizante sobre um homem se quebrar, e aquela não seria a primeira vez. Qual não foi sua surpresa, para não dizer raiva, quando, ao parar em frente ao prédio onde morava, constatou que a moto de Behnam não roncava mais atrás dela. Podia ter constatado isso mais cedo não fosse por haver colocado o volume do rádio no talo e se não precisasse manter os olhos restringidos entre o caminho, o câmbio e a garrafa de bebida.
Esperou e nada de Behnam aparecer. Tinha duas opções: ir para seu apartamento e dormir ou ir atrás do moço. A segunda parecia pouco condizente com o orgulho leonino dela: se não veio atrás, comece a se acostumar com minha mais fria e solene indiferença... mas havia algo de ariano em sua personalidade também — não deixaria em paz seu alvo enquanto não tirasse dele o que queria.
Era a melhor vingança: na pior das hipóteses, deixar claro para ele o quanto saía perdendo por trocá-la pela disbulia insossa dos igrejismos. Ela não era somente a maçã da tentação, era também a serpente.
Levou um susto, mas também satisfação, por descobrir que a razão da "desistência" de Behnam fora um acidente.
A moto dele estava caída no chão, toda ralada. Algo cheirava mal no reino da Dinamarca. Até a canção que tocava agora no rádio era "Welcome to Hell" do Venom. Estranho, porque tinha deixado numa estação de música POP. Ela deu meia-volta para entrar no carro e chispar dali incontinenti, experimentando uma sensação que nunca tivera antes: como que uma malignidade impalpável a rodeasse, não como uma brisa, não, mas como uma cortina roçando nela. E essa carícia ambígua lhe dava arrepios, não como conseqüência de um estímulo da libido, mas de um alerta do seu "sexto sentido" de que aquele toque era deformador e impiedoso.
- Isso se chama Vicissitude - uma voz de mulher falou atrás dela. Uma mulher que sabia o que a nova-iorquina estava sentindo. De imediato, foi a estranheza ante esta clarividência que se destacou do espectro de emoções de Anne, em torvelinho. Logo na seqüência o processamento da frase: vicissitude é um termo usado mais no sentido de "instabilidade das coisas". Aquela voz de mulher ligava a palavra ao toque deformador que, por induzimento dos Auspícios, Olga queria que Anne antecipasse, para acrescentar ao momento das experimentações sádicas de Morávec a tortura da ansiedade prévia, da expectativa de calamidade. Pois a Tzimisce só podia concluir que o desejo do Voivode com aquela beldade era deformá-la a um ponto em que ele pudesse dar as gargalhadas mais apoteóticas do seu sadismo trash.
Olga nunca se achara muito bonita. A Vicissitude era um poder que lhe possibilitava moldar o próprio corpo e feições do jeito que quisesse, mas o somente-ter esse poder já a satisfazia, e por isso ela deixava as sardas e outras imperfeições do corpo, por exemplo o não ter uma cintura, apesar de ser magra — seu tórax formava com as pernas um bloco sem curvas (como se diz na gíria, "ela é uma tábua"), que não é padrão de beleza nem na Bulgária, onde as refeições de muitos são minuciosamente racionadas. Para ela, seria muito mais prazeroso transformar Anne numa réplica do palhaço Arrelia sem necessidade de maquiagem e acessórios, do que fazer de si mesma a realização concreta de um daqueles milagres improváveis do photoshop que se vêem em uma Penthouse. 96 cm de busto, 45 cm de cintura e 83 cm de quadril. Na "prática", nem o Pitanguy para lograr essa façanha, a não ser por via de arrancar costelas, remover partes das vísceras e fazer enxertos que, de qualquer modo, iriam demandar correções do photoshop depois... a operação acabaria deixando marcas dignas de 'A Noiva de Frankenstein'. Os Tzimisce poderiam fazer fortuna no mundo pornô, mas isso era coisa pra Setita. O Clã dos Transformadores tinha objetivos mais "elevados".
- Aí está o seu anjinho - a vampira jogou Behnam diante de Anne, tão logo a programadora se virou para ver quem lhe falava.
Olga esculpira do crânio dele uma circunferência em torno da cabeça, como se fosse a excrescência de um tubarão-martelo, mas no formato de auréola. O prolongamento da calota craniana terminando numa argola parodiante, também tinha cabelo: a Tzimisce apenas redistribuíra a massa óssea do crânio. Achava engraçado, mas sabia que Anne não via graça nenhuma naquilo. Pelo contrário, rapidamente voltou-se na direção do carro, pensando em embarcar e sumir dali sem maiores indagações, dando Behnam já por morto. Se o acidente havia provocado aquele nível de deformação na cabeça do pobre coitado, traumatismo craniano devia ser o menor dos males que ele sofrera. Ela não sabia que Behnam apenas passara por uma remodelagem nas mãos escultoras de uma Tzimisce. Ela não sabia o que era um Tzimisce. Nem acreditava em vampiros.
Mas isso estava para mudar.
No que se virou novamente para o carro, Olga já se encontrava lá, interpondo-se entre Anne e o veículo. Não só isso, mas parecia que toda a população de ratazanas da cidade emergia dos bueiros, formando um círculo em torno do automóvel, Anne, Olga e o corpo desmaiado de Behnam. Realmente ele sofrera algumas fraturas, mas o capacete o salvara do pior. Por instantes Olga fez, mentalmente, comparações com a Máscara: será que ela realmente tinha o poder de salvar os vampiros do pior? Mas era realmente a segurança da Família que achava-se em jogo para o Sabá? Não era essa a questão para eles. E Olga na verdade só estava naquela por Morávec. Não acreditava em pregações de nenhuma espécie, não tinha pendor para se afiliar a Seita alguma.
- Está vendo os meus amigos? - Olga deu com a cabeça para a multidão de ratos imensos. Através do Animalismo ela não apenas os convocara como os fazia exibir uma agressividade dos filmes b de horror gore, como se apenas estivessem esperando o comando dela para saltarem em Anne e Behnam e reduzi-los a ossos (ou nem isso). - Eles realmente estão com fome. Pense neles como se fossem portadores do T-virus. Então seja sensata e entre aqui, que vou tirar você e seu amigo desse ratódromo.
O "aqui" era o porta-malas do Ford, que Olga abrira transformando o próprio indicador em uma chave: como se ela fosse de borracha, o dedo se achatou e adquiriu as ranhuras certas para se encaixar na fechadura do compartimento, embora se mostrando muito mais maciço que borracha na hora de girar o cilindro e liberar a trava — era para Anne entrar no porta-malas, e ela não tinha muita escolha; ficar equivalia a ser devorada por ratos que pareciam endemoninhados, olhos vermelhos, dentes expostos e fintas de ferocidade, que indicavam sua disposição para atacar e estraçalhar.
Que destino poderia ser pior do que morrer à base de dentadas de ratazana? Nunca vira tantas, nem imaginara que a população desses animais em Bennington pudesse se equiparar à de Nova Délhi. Além do mais, ao observar a facilidade com que a moça sardenta erguia Behnam do chão e o atirava no porta-malas como se ele fosse um bonequinho de trapos, conscientizou-se de que aquela sujeita poderia FORÇÁ-LA sem dificuldade: na verdade, sequer ser devorada pelos ratos era opção.
- Vamos logo, que você não quer me ver perder a paciência - mandou Olga sisuda, mas num tom de voz inalterado.
off: Eu não avancei muito com a trama porque ainda não sei quais os planos do Morávec pra Anne. Só sei que ela não vai ser colocada em nenhuma situação aviltante. Além do mais, é praxe permitir ao jogador tentar resistir o ataque... Se a Pérola achar desnecessário resistir, nem precisa postar se não quiser. Passa o recado lá no bate-papo, que aí o próximo post será do Morávec: todos já na Laverock's Haunted Mansion.